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Motim a bordo: vírus abala Marinha mais poderosa do mundo

Renúncia de ministro que destituiu comandante de porta-aviões por pedir ajuda para infectados mostra o potencial estonteante da crise da pandemia

Por Vilma Gryzinski 8 abr 2020, 07h35

Na hora errada, no lugar errado, com os homens errados.

Entre tantas coisas inacreditáveis que estão se sucedendo no mundo, a crise na Marinha americana abre uma brecha mais assustadora ainda: o que aconteceria se a cadeia de comando fosse rompida nas forças armadas mais poderosas do planeta?

Hierarquia, obviamente, é a base das organizações militares. Ainda mais na Marinha, onde um grupo de oficiais tem que ficar até meses mantendo a disciplina sobre centenas ou milhares de comandados.

O “motim” que levou o secretário da Marinha interino, Thomas Modly, a renunciar ou ser renunciado foi ao contrário dos casos clássicos da vida real ou da ficção.

Os homens (e mulheres) do comandante de um dos prodígios da Marinha mais poderosa do mundo, o porta-aviões Theodore Roosevelt, ficaram revoltados não só com a demissão dele como com os termos desastrosos usados por Modly num discurso sobre o assunto.

Recapitulando: o capitão Brett Crozier foi tirado do comando do porta-aviões, uma das posições mais prestigiosas da carreira, por escrever uma carta a seus comandantes insistindo que o Roosevelt recebesse licença, até então negada, para desembarcar e colocar a tropa em quarentena na ilha de Guam, onde estava ancorado. 

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Motivo: havia 114 casos diagnosticados de coronavírus entre os mais de 4 000 tripulantes.

“Não estamos em guerra. Marinheiros não precisam morrer”, apelou.

Num porta-aviões, onde a tripulação reparte espaços exíguos, os dormitórios são prateleiras de beliches para 60 pessoas cada e a maioria nem sequer tem acesso aos deques abertos, é obviamente impossível pensar em distanciamento de segurança.

“Remover a maioria da tripulação embarcada num porta-aviões nuclear dos Estados Unidos e isolá-la por duas semanas pode parecer uma medida extraordinária”, escreveu Crozier.

O comandante certamente tinha plena consciência da importância estratégica dos 19 porta-aviões (onze preenchendo todos os requisitos, os demais fazendo-o na prática) que dão aos Estados Unidos uma capacidade de projeção de poder de superpotência única.

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Ainda mais num momento de crise sem precedentes, em que a China está aproveitando a maldição que saiu de Wuhan para aumentar a guerra de propaganda, expandir sua influência global e desafiar mais ainda os Estados Unidos no teatro operacional mais importante, o Mar do Sul da China.

Problema: o memorando foi mandado por e-mail de uma forma considerada deliberadamente destinada a vazar para a imprensa e, assim, forçar uma reação.

Foi a interpretação dada por Modley, que assumiu como “minha e somente minha” a decisão de tirar Crozier do comando.

O capitão saiu debaixo de aplausos dos marinheiros alinhados no deque, com seu nome entoado como num jogo de futebol.

De jaqueta de couro e expressão nobre, ele saiu do porta-aviões e, antes de subir no veículo que o aguardava, virou-se para olhar os homens e mulheres que o aplaudiam. Uma cena de filme.

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Mais ainda porque depois foi diagnosticado com o novo vírus.

A decisão de Modley, que estava como interino no cargo, foi apoiada pelos altos escalões: hierarquia é hierarquia.

Mas a confusão aumentou depois que o ministro, ex-piloto de helicóptero da Marinha, usou a linguagem nada cuidadosa de seu meio para arengar a tropa do porta-aviões. 

Foi pessoalmente ao navio e tentou explicar que Crozier havia mandado o e-mail para mais de 20 pessoas, “acreditamos que possa ser mais”. Logo vazou para o jornal San Francisco Chronicle, que “publicou informação sigilosa sobre um navio de guerra da Marinha”.

“Se ele não achava que essa informação iria vir a público, nessa era da informação em que vivemos, então era A) ingênuo demais ou burro demais para comandar um navio como esse. A alternativa é que fez isso de propósito E isso é uma violação grave do Código de Justiça Militar, com o qual todos vocês são familiarizados”.

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A argumentação, e até o tom bruto, fazem sentido. Mas Modley foi vaiado nos termos mais crus possíveis. “F*** off”, alguém diz num dos vídeos.

Depois pediu desculpas pelos termos usados, depois Donald Trump disse que podia ver o assunto porque “estava ouvindo coisas boas sobre os dois cavalheiros”, depois foi conversar com o ministro da Defesa, Mark Esper. Depois apresentou a renúncia.

Em tempos normais, já seria uma tremenda crise. No pandemônio atual, abre uma perspectiva impensável: unidades militares sob risco de contágio coletivo que se rebelam.

No mais clássico dos livros (depois filme com Marlon Brando) sobre revoltas a bordo, O Motim, a história do veleiro comercial Bounty mostra as tensões que um capitão caprichoso ou até louco provocou com a insensata viagem para a nada importante missão de recolher mudas de fruta-do-conde no Taiti.

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Nas forças armadas profissionais, a tendência a abafar e até proteger as mancadas feitas por oficiais de alta patente, equilibrando o espírito de corpo com rigorosos processos de investigação.

Quando não dá para segurar, cabeças rolam. Metaforicamente.

Os militares americanos formam as forças armadas mais poderosas do planeta – e de todos os tempos. São também preparadas para enfrentar uma guerra nuclear, com consequências infinitamente mais devastadoras do que o vírus.

O caso do porta-aviões é episódico, mas com certeza está deixando muitos quepes em pé. Instabilidade política, hierárquica e psicossocial formam o caldeirão do inferno.

“Já vai tarde”, disse um tripulante do Theodore Roosevelt ao saber da renúncia do secretário Modly.

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