Massacre no México: fruto da política de “abraços, não balaços”
Três mulheres e seis crianças da religião mórmon fuziladas ou queimadas vivas são o retrato mais hediondo da “pacificação” prometida por presidente mexicano
Decretar o fim da guerra às drogas, como se a repressão fosse um mal em si mesmo, é a proposta de vários partidos e ONGs aliados com a esquerda em muitos países, especialmente na América Latina.
Foi isso que prometeu o presidente Andrés Manuel López Obrador.
Disse que ia pacificar o país, instaurou o fim da tática de confrontação e criou um slogan bonitinho, “abraços e não balaços”.
Parecia um sonho para os otimistas ou convertidos, que debitam os níveis alucinantes de crueldade dos traficantes mexicanos à pobreza, à injustiça social e às forças de segurança que combatem os bandidos na ponta das armas. Isso quando não se vendem aos diferentes cartéis.
O que parecia impossível ficar pior, piorou muito.
A matança dos inocentes numa região entre os estados de Chihuahua e Sonora foi o ápice de episódios cada vez mais alucinantes.
Todas as vítimas são do clã LeBarón (com acento, para destacar a pronúncia em espanhol e a dupla nacionalidade, mexicana e americana).
O grupo descende de mórmons americanos que fugiram dos Estados Unidos nos anos vinte do século passado.
A poligamia, um dos pilares de sua estranha religião, fundada por um visionário chamado Joseph Smith, tinha passado a ser reprimida, com penas de prisão para os mórmons com várias esposas.
Os que aceitaram acabar com a prática, ficaram, principalmente no estado de Utah, sua grande base. Os que rejeitaram, fugiram.
O pai do senador Mitt Romney, que foi candidato republicano a presidente, derrotado por Barack Obama, veio desse ramo.
Os mórmons cresceram e frutificaram, guiados pelas práticas de trabalho duro, busca da prosperidade e vida comunitária.
As fazendas que têm em LaMora são um oásis de ordem, limpeza, flores e produtividade.
E uma fonte de encrencas. O sucesso não passou despercebido à grande variedade de criminosos que existe no México, similar à do Brasil, mas com maior poder de infiltração ainda nos órgãos de estado devido aos lucros fabulosos que o mercado americano das drogas gera.
Quando um jovem de 17 anos do clã foi sequestrado, os LeBarón se recusaram a pagar o resgate de um milhão de dólares, com base no raciocínio de que nunca mais a coisa ia parar.
Fizeram campanhas, cobraram governos e, excepcionalmente, conseguiram a libertação do refém.
Quando 25 integrantes do bando sequestrador foram presos e seu chefe extraditado para os Estados Unidos – a única maneira de manter bandidos importantes na cadeia -, pareciam ter vencido.
Logo depois, um grupo de sicários, como dizem os mexicanos, invadiu uma das casas do conjunto de fazendas. O dono, de 32 anos, e um cunhado que havia corrido para ajudá-lo foram levados para fora e fuzilados.
É por precedentes assim que o massacre das mulheres e seus filhos não pode ser descartado, de cara, como um “erro” ou engano dos cartéis em guerra em Sinaloa e outras regiões.
Os LeBarón eram ativos no combate à criminalidade. Até armas, que normalmente os mórmons não portam, têm.
Foi armados que homens da comunidade saíram para procurar as crianças sobreviventes e desaparecidas dos dois locais do massacre.
Segundo reconstituição possível, até agora, três mulheres e seus 14 filhos – procriar muito é um dos mandamentos – haviam saído de manhã em duas peruas Escape de Bavispe, em Sonora.
Duas iam para os preparativos de casamento de uma prima, outra pretendia buscar o marido no aeroporto, do outro lado da fronteira com os Estados Unidos. Viajavam juntas por segurança.
A Escape dirigida por Rhonita Miller LeBarón teve um pneu furado. O outro carro voltou para buscar ajuda.
Cada uma das outras duas mulheres dirigia um SUV. Encontraram a perua de Rhonita incinerada e os corpos calcinados.
De Rhonita, da filha de dez anos, o filho de oito e os gêmeos, Tiana e Titus, de oito meses. É possível que os bebês, presos nas cadeirinhas, ainda estivessem vivos quando o carro foi incendiado, depois do balaço.
Não sobrou ninguém para dar um abraço, como propõe o slogan do presidente, conhecido como AMLO.
As duas outras mulheres tentaram fugir. Christina Langford aparentemente conseguiu colocar a cadeirinha da filha pequena no chão do carro. Faith, de sete meses, foi encontrada viva, muitas horas depois, pelos próprios mórmons que fizeram o resgate.
Moradores da região e soldados ajudaram os mórmons a achar, já de noite, no escuro, as seis crianças, dos sete filhos de Dawna Langford Ray, que conseguiram sobreviver, embora com ferimentos a bala.
O irmão mais velho, de doze anos, escondeu-as debaixo de ramos de arbustos, ao lado da estrada, e foi andando a pé até LaMora pedir socorro.
Como estava demorando demais, outra irmã, de nove anos, foi atrás. Foi a que demorou mais a ser encontrada porque havia se perdido.
Lafe Langford Jr, parente das vítimas, fez postagens ao vivo do drama inacreditável, dirigindo-se “aos cidadãos dos Estados Unidos da América, do México e aos seres humanos de todo o mundo”.
“Não recebemos ajuda dos poderes nem das autoridades até o momento; um dos meninos maiores escapou com quatro de seus irmãos e se encontram escondidos. Estamos lutando para encontrar nossos seres queridos, arriscando nossas próprias vidas, enquanto o governo e o Exército não estão em lugar nenhum.”
A resposta, Donald Trump foi até contido, para seus padrões, ao oferecer ajuda militar para “varrer esta escória da face da terra”.
AMLO teve a cara de pau de fazer expressão de compungido, mas repetindo que “não se combate a violência com violência”.
BANDIDO SOLTO
“Ao longo de um ano de mandato, Andrés Manuel atraiçoou sua promessa e isso pode ser medido com as centenas de milhares de mortos, desaparecidos, com as mulheres e as crianças assassinadas em sua comunidade, que são a última ponta do iceberg”, disse o escritor Javier Sicilia, em carta a Julián LeBarón, com quem militava junto em campanhas contra a criminalidade.
“A que níveis de espanto e de horror temos que cair para que este país, este povo, volte a reagir”.
Até o ator Gael García Bernal, simpático ao esquerdismo e a AMLO, tuitou: “Se o governo e López Obrador não mudam de narrativa para assumir responsabilidades, para que votamos em vocês?”.
Tinha um palavrão no meio.
Depois deu medinho de “fazer o jogo” da direita e recuou.
López Obrador não tem que “mudar de narrativa”. Provavelmente, tem que mudar de cabeça.
Enquanto o número de homicídios só aumenta, as insanidades da “política de contenção” se somam às barbaridades que diz – e pratica.
Chegou a lamentar a “fria e desumana” penitenciária de segurança máxima nos Estados Unidos, o único lugar onde é garantido que o maior traficante mexicano, El Chapo, não vai fugir.
Pior, muito pior: mandou soltar Ovidio Guzmán, o filho de El Chapo, preso numa mal planejada operação em Culiacán.
A organização criminosa estava tocando o terror na cidade e as autoridades de segurança estavam mal preparadas – sem cooperação dos Fuzileiros Navais, a força mexicana treinada para prender chefes de facção, e da DEA, a polícia antidrogas americana.
O presidente bonzinho achou que “vidas humanas valiam mais” e mandou Ovídio ser liberado. No Brasil, seria equivalente a dar carta branca ao filho do chefe da maior organização criminosa.
Com uma diferença importante: nenhum presidente brasileiro, de qualquer tendência, jamais manifestou em público a bandidolatria de AMLO, que chegou a quase chorar pela situação da mãe de El Chapo – aliás, perfeitamente viva, ao contrário do número incontável de vítimas do cartel.
No primeiro semestre, o índice de homicídios por 100 mil pessoas aumentou 5,3% em relação a 2018.Em junho, o aumento foi maior: 8%, num total de 3 000 assassinatos.
Um dos casos mais chocantes foi a morte de treze policiais numa emboscada parecida com a sofrida agora pelos mórmons.
Uma verdadeira força-tarefa de traficantes, com armamentos muito superiores, atacou a comitiva de policiais que iam cumprir um mandato judicial em Michoacán.
Os policiais foram caindo um a um, num tiroteio sem esperanças. Além dos treze mortos, nove ficaram feridos.
Os narcos ainda tiveram a calma de deixar cartolinas nos para-brisas dos carros incendiados, acusando a polícia local de favorecer um cartel inimigo.
É justo responsabilizar o presidente mexicano, um humanista populista com aura parecida com a do atual prisioneiro e influencer de Curitiba, pelo aumento de um pesadelo que já parecia insuportável?
Se ele manda a polícia não atirar, solta bandidos e põe em prática uma política de segurança evidentemente errada, tem, sim, sua parte de responsabilidade.
AMLO foi eleito prometendo salvar o país da violência hedionda e autodestrutiva, que deixa os cidadãos comuns numa situação de impotência total e os criminosos no topo da pirâmide.
Bebês queimados vivos são a prova mais inconcebível de que ele está fazendo a sua parte para piorar as coisas.