“Guerras da gasolina”: do Sri Lanka à Alemanha, a coisa está feia
Um governo que simplesmente se desmanchou diante de protestos populares, movidos pela falta de combustível, é símbolo da atual crise
Quem está governando o Sri Lanka? No momento, ninguém. Depois que o presidente e o primeiro-ministro foram obrigados a renunciar, diante de protestos avassaladores, reina a anomia, um dos estados mais perigosos para qualquer sociedade.
O presidente Gotabaya Rajapaksa não resistiu às cenas clássicas, do povão tomando a residência oficial, com mergulhos na piscina e uma esticadinha na cama presidencial. Lembraram a tomada do palácio de Ferdinand e Imelda Marcos nas Filipinas, em 1986, ou de Viktor Yanukovych na Ucrânia, em 2014 (atualização: o filho do casal Marcos foi recém-eleito presidente e Yanukovych seria restaurado no poder em Kiev se Vladimir Putin conseguisse o que queria com a invasão da Ucrânia).
No caso do primeiro-ministro, Ranil Wickremesinghe, os protestos atingiram nível mais grave: sua casa particular foi incendiada.
Ambos, presidente e primeiro-ministro, fizeram a sua parte na devastação econômica do país. No caso do presidente, chamado de Gota, o esforço foi concentrado: contraiu dívidas impagáveis com a China para construir elefantes brancos como um porto de águas profundas que não tem navios (mas eventualmente recebe visitas de elefantes de verdade, como notou o New York Times) e um centro de convenções que não tem convencionais.
Mas o empurrão mesmo veio da dupla crise que está apenas começando a incendiar o mundo: o desabastecimento e as “guerras da gasolina”, a falta de combustíveis desencadeada pela invasão da Ucrânia.
Outras crises estão desenhadas em diferentes pontos do planeta, do Equador à Argentina, de um punhado de países africanos aos asiáticos mais pobres.
Enquanto Putin espera, vingativamente, que o barril de petróleo chegue a 200 dólares, uma hipótese que não soa mais absurda, a crise abarca não apenas os subdesenvolvidos e encrencados de praxe. Na Alemanha, já estão entrando em vigor horários alternativos para o fornecimento de água quente em prédios residenciais.
Embora muitos alemães digam que tomarão banhos mais curtos de boa vontade, se for para apoiar a Ucrânia, o problema evidentemente é muito mais complexo: a própria essência de uma economia pujante e devoradora de energia, acostumada a consumir gás russo para vender máquinas na China, está sendo colocada em questão.
Na França, onde até a direita é de esquerda quando se trata de intervencionismo estatal, o governo de Emmanuel Macron anunciou a reestatização da EDF, a Électricité de France, sob cuja bandeira funcionam inclusive as usinas nucleares. A participação do estado já era grande, agora vai virar total: o aumento das tarifas, que o governo vinha subsidiando, tem o poder de desencadear protestos incontroláveis, especialmente num país onde eles fazem parte do tecido social, como na França.
A briga pelos subsídios às tarifas de luz esteve na base do conflito interno que acabou levando à renúncia do ministro da Economia Martín Guzmán na Argentina. O grupo cristinista que controla a estatal da eletricidade comemorou a queda de Guzmán e a ascensão de Silvina Batakis, nomeação pessoal de Cristina Kirchner.
“Não dura até o fim do ano”, dizem os mais céticos sobre o futuro da nova ministra. Outros acham que esta é a interpretação otimista: a Argentina está chegando muito perto do perigoso ponto em que as autoridades econômicas perdem o controle. Os indicadores apontam para a desordem fiscal e monetária em escala generalizada. Na vida do cidadão comum, isso se se traduz no derretimento da moeda e na falta de produtos que, quando aparecem, têm preços remarcados que aceleram a inflação já perto do descontrole.
No Sri Lanka em que o governo foi varrido do mapa, os combustíveis estavam racionados: só podiam ser usados em atividades essenciais. Ir a pé para o trabalho se tornou uma realidade não só para os mais desvalidos como para setores da classe média. Deu no que deu.
A secretária do Tesouro americano, Janet Yellen, está em viagem a países asiáticos esta semana com uma missão complicada: arrebatar apoio para o plano do governo Biden de conciliar a manutenção das sanções contra a Rússia com a liberação de estoques críticos de petróleo russo a preços relativamente baixos.
Os mais céticos, que existem em toda parte, dizem que Yellen não conseguiu sequer identificar a fogueira inflacionária nos Estados Unidos – o que exigiria bloquear os cinco sentidos, fora todo o treinamento de uma vida inteira como economista -, que dirá coordenar um acordo com atores globais para estabelecer um preço máximo para o petróleo russo.
“Embora Biden tenha estimulado a Europa a cortar o petróleo russo como castigo pela invasão da Ucrânia, alguns analistas, bem como assessores econômicos do presidente, agora temem que essa política resulte na retirada do mercado de grandes quantidades de petróleo russo, que responde por quase 10% do abastecimento mundial”, escreveu o Times, tentando explicar a contradição.
Um movimento dessa natureza “poderia elevar os preços a 200 dólares o barril ou mais, resultando no preço de sete dólares o galão de gasolina para os americanos. O crescimento global poderia entrar em retrocesso nas medida em que consumidores individuais e empresariais reduzissem gastos em resposta a preços altos dos combustíveis e os bancos centrais, que já estão subindo as taxas de juros para controlar a inflação, fossem obrigados a aumentar ainda mais os custos dos empréstimos”.
Tradução: o mergulho na piscina do presidente do Sri Lanka foi apenas um sinal do que pode ser uma crise mundial de proporções catastróficas para todos nós.
Nem é preciso dizer que Joe Biden seria um dos vários governantes varridos do mapa, mesmo que o povão não entrasse na Casa Branca.
Quando era vice, Biden, segundo uma agente do Serviço Secreto, tinha o hábito nada elegante de nadar pelado na piscina da resguardada residência do vice-presidente, diante da equipe de segurança.
A piscina da Casa Branca é mais exposta, mas não está completamente garantida: as “guerras da gasolina” têm um potencial de tocar fogo em qualquer lugar do planeta.