Em nome do pai, do filho e do santo Putin: vinte anos de poder
Ter feito a Rússia grande de novo, com todos os métodos disponíveis ao autoritarismo, levam o seu reconstrutor a uma reeleição do tipo eterna
Durante um dos muitos jantares da conferência de Ialta, aquela em que o mundo pós-Segunda Guerra Mundial já estava dividido e Stálin ficava com a lista de compras completa, os convivas discutiram a próxima eleição na Inglaterra.
“Quem poderia ser melhor líder do que aquele que obteve a vitória?”, argumentou Stálin, apenas retoricamente, para Winston Churchill. Todo mundo, hoje, já sabe o que viria a acontecer – a fragorosa derrota do mitológico pai da vitória.
Mas naquele dia 19 de fevereiro de 1945 o resultado ainda não era garantido, como tudo o que envolve eleitores e urnas numa democracia.
Churchill explicou que disputava eleição num sistema de dois partidos.
“Um partido é muito melhor”, filosofou Stálin.
O episódio é narrado no livro de Simon Sebag Montefiore sobre a vida alucinante no círculo mais próximo do Supremo. Na corte do czar vermelho, entre bebedeiras e sessões de cinema, bajulação, subserviência, humilhação e os mais extremos esforços para adivinhar o que ele realmente desejava não eram garantias de sobrevivência.
Vladimir Putin chega à eleição presidencial de 18 de março numa posição mais confortável do que a dos ditadores clássicos. Não precisa do regime de partido único, embora não tenha nem um único adversário real concorrendo .
Mesmo que tivesse, provavelmente ganharia, embora sem os 81% das preferências do momento.
Putin é o mais bem sucedido exemplo de “autoritarismo competitivo” , termo cunhado pelos professores Steven Levitsky e Lucian Way, para designar o sistema em que as eleições existem para reforçar o regime, não garantir a alternância no poder. Os bolivarianos são da mesma família, embora com resultados diferentes.
Mesmo com a vitória avassaladora garantida, Putin não dispensa gestos do grande teatro nacional-populista, do qual o mais recente foi seu mergulho na água de um buraco cavado no gelo sobre o lago Seliger.
O ritual, que faz parte da fé popular dos cristãos ortodoxos , pode ser uma brincadeira de rapazes no auge do inverno ou um ato de purificação, celebrando a Epifania do Senhor, a revelação da divindade de Jesus.
Com Putin, virou quase que um espetáculo de hagiografia, uma canonização de mau gosto, mas impressionante como encenação: os padres ortodoxos com as batinas negras sobre a neve branca, levando ícones e entoando cânticos em eslavo eclesiástico, a língua original de São Cirilo e São Metódio, os evangelizadores da Rússia.
Nesse ambiente solene, Putin apareceu com roupas folclóricas, casaco e botas de pele de carneiro e mais nada, só um calção de banho por baixo, para entrar na água a seis graus abaixo de zero.
O uso da religião é um dos muitos métodos, brutais ou sofisticados, que Putin emprega com disciplina, foco, calculismo e suprema capacidade de manipulação.
Com isso, conseguiu tirar a Rússia do buraco pós-soviético e refazer a grandeza inigualável do maior país do mundo, méritos indiscutíveis que lhe garantem o apoio do público interno.
Os russófilos costumam dizer que Putin derivou para o expansionismo neo-imperial por culpa dos Estados Unidos e aliados europeus, que não respeitaram o acordo tácito de não levar a Otan e a União Europeia para o “cinturão” de segurança da Rússia – os infelizes que vivem em países perto demais de Moscou e longe demais de Deus.
Os russófobos acham que Putin faria isso de qualquer jeito. E ainda temem que o supremo cinismo com que tomou a Crimeia e uma parte oriental da Ucrânia possa se repetir, em especial nos vulneráveis países bálticos, se ele encontrar brechas para explorar.
As brechas viriam das reviravoltas políticas internas nos países da aliança atlântica. Daí o jogo pesado nas operações de propaganda – a desinformatsya em que os russos sempre foram mestres, hoje chamada de fake news – e o investimento em partidos de extrema-esquerda e extrema-direita.
Tudo o que abalar a ordem constituída do inimigo favorece seus planos. Mas tem Putin uma grande ambição além da própria perpetuação no poder?
Diversos “mentores” de Putin já entraram e saíram do seu círculo mais próximo, num uso não sanguinário da “instabilidade permanente” praticada por Stálin, segundo a definição de Hannah Arendt.
De modo geral, todos pregam alguma variação do que se poderia chamar de excepcionalismo russo. Um dos nomes mais citados é o relativamente obscuro Ivan Ilyin, chamado de “o filósofo de Putin”, por aparecer em vários discursos e até num documentário chapa branca – o que mais poderia ser?
Ilyin foi um “russo branco”, um exilado da revolução bolchevique que brutalmente o tirou do ensino da filosofia e o levou de volta à Alemanha, onde trombou com o outro grande choque do século, a ascensão do nazismo.
Ele é um dos três filósofos cuja leitura o Kremlin indicou aos governadores – uma moda que definitivamente seria estranha em outras plagas. Autocracia, alguma versão do eurasianismo e messianismo à moda russa são alguns dos princípios presentes nas obras dos três.
“O Ocidente exportou o vírus anti-cristão para a Rússia. Tendo perdido o elo com Deus e com a tradição cristã, tornamo-nos moralmente cegos, tomados pelo materialismo, a irracionalidade e o niilismo”, escreveu Ilyin.
São conceitos presentes em obras aparentemente tão distantes quando livros de Alexander Soljenítsin e discursos de Putin – e uma ala do pensamento conservador em países ocidentais.
Um ex-agente da KGB que lê filósofos nacionalistas obscuros daria um filme russo fascinante. Se houvesse as condições de livre expressão, não a eterna subserviência ao poder, exemplificada pelo chefe da indústria cinematográfica soviética na década de 30, Boris Shumiatskii, que escreveu em 1935: “A publicação dos valiosos pronunciamentos do camarada Stálin sobre o cinema, e suas instruções aos mestres, são o maior e mais importante dever do país e do cinema.”
É claro que Shumiatskii foi fuzilado num dos grandes expurgos stalinistas.