Se uma pessoa do sexo masculino diz que se identifica como eunuco, deve o médico que a atende concordar em castrá-la para reafirmar sua identidade de gênero?
A pergunta não é retórica. Desde 2022, a mais engajada organização nesse campo, a Associação Profissional Mundial para a Saúde de Transgêneros, recomenda para os autoidentificados como eunucos a castração física e química, incluindo a orquiectomia (remoção dos testículos), acompanhada ou não da extração do pênis, seguida de tratamento hormonal. A condição que no passado foi praticada em massa no império otomano e na China para obter servidores fieis, sem laços de família e capacitados – ou descapacitados – para vigiar as mulheres do harém, transformou-se num caso a ser resolvido com tratamento médico radical.
Diante de intensas transformações sociais, pessoas comuns e trabalhadores de saúde muitas vezes ficam perdidos. É certo acatar sem discussão crianças que se declaram trans e submetê-las a tratamento – no caso de meninos que se consideram meninas, prover intervenções que podem, através de tratamento hormonal, ser similares às sugeridas para os eunucos?
Acatar a todos com igual respeito e prover tratamentos que os ajudem na questão da identidade de gênero são atitudes generosas que, depois da experiência inicial, têm sido contestadas em muitos países. Suécia e Noruega, postos avançados em tudo que se refira à vanguarda do comportamento, suspenderam os bloqueadores hormonais para menores. Agora, a Inglaterra (que toma decisões independentes dos outros componentes do Reino Unido) decidiu que os bloqueadores também não serão mais receitados.
INFERTILIDADE
Os bloqueadores atrasam ou suspendem os efeitos da puberdade em características sexuais como desenvolvimento de seios e testículos, menstruação, pelos corporais, musculatura e outras. Começaram a ser prescritos com a ideia de que o menor com crise de identidade de gênero “ganharia um tempo” para se decidir. Como a prática mostrou que não são inócuos ou facilmente reversíveis, está havendo a regressão na recomendação de seu uso.
Nos Estados Unidos, esse tipo de decisão é de nível estadual e algumas instituições de saúde também estão preocupadas com a possibilidade de processos. Pacientes que receberam os bloqueadores, seguidos eventualmente de grandes intervenções como a mastectomia dupla de seios saudáveis e operações genitais, podem alegar que se tornaram inférteis, entre outras sequelas físicas e psíquicas, quando não tinham idade para tomar uma decisão de importância tão vital.
Os casos de arrependimento são mais frequentes em jovens do sexo feminino, o que faz alguns especialistas concluir que a pressão das redes sociais criou um fenômeno de falsa dismorfia de gênero.
A decisão do NHS da Inglaterra, o serviço público de saúde, é consequência de estudos feitos depois de denúncias de abusos na mais conhecida clínica de tratamento de menores com questionamentos de identidade, o Tavistock Center.
“Concluímos que não existem evidências para confirmar a segurança ou a eficácia clínica de hormônios de supressão da puberdade de forma a disponibilizar o tratamento rotineiramente a essa altura”, diz o estudo.
“MORALMENTE ATERRADOR”
Como o tema é altamente explosivo e sujeito a visões ideologizadas, é preciso muito cuidado para tratá-lo. Mas não dá para ignorar depoimentos como o de Jamie Reede, que trabalhou nesse campo num hospital da faculdade de medicina Universidade de Washington. Ela acompanhava os casos como uma espécie de administradora de pacientes, que majoritariamente recebiam bloqueadores hormonais.
“Eu achava que estava salvando crianças trans”, contou no ano passado. “Mas não pude continuar a fazer isso. O que está acontecendo com as crianças é medicamente e moralmente aterrador”.
Jamie Reede é de esquerda, identifica-se como queer e é casada com um homem trans. Gerou três filhos. Acompanhou diretamente a explosão de casos de meninas que, sem histórico de dismorfia de gênero, diziam que eram trans e pediam para ser tratadas com testosterona.
“As meninas tinham comorbidades: depressão, ansiedade, distúrbio de déficit de atenção e hiperatividade, distúrbios alimentares, obesidade. Muitas tinham diagnóstico de autismo”, escreveu ela – posteriormente, um estudo britânico coincidiu em apontar que um terço das pacientes dirigidas para Tavistock estavam no espectro do autismo.
“Qualquer pessoa que levantasse dúvidas, corria o risco de ser chamada de transfóbica. Em particular, os médicos reconheciam que os autodiagnósticos falsos eram um fenômeno de contágio social” disse Reede.
DANÇA DOS HORMÔNIOS
O medo da acusação de transfobia é um dos motivos para a retração de profissionais de saúde . Obviamente, eles existem no mesmo espaço do resto da sociedade e são submetidos às mesmas pressões. Também são eles que ocupam uma posição única para entender as múltiplas e complexas questões ligadas à identidade de gênero.
Aos poucos, e não sem tropeços, vai avançando o conhecimento sobre estas questões – e, eventualmente, de forma surpreendente.
Um dos argumentos em favor das intervenções radicais é que jovens trans correm o risco de se suicidar por causa do sofrimento emocional de ter um corpo que rejeitam. Mas uma pesquisa publicada pela revista da Associação Americana de Urologia indicou que mulheres trans, ou seja, homens biológicos, que fazem a operação para criar uma vagina têm mais risco de suicídio do que antes da cirurgia. Aumentou nos casos pesquisados de 1,5% para 3%.
Entre as mulheres que se identificam como homens e colocam um pênis cirúrgico, criado com musculatura do braço, entre outras opções, não foram encontradas alterações.
Não há nada ainda sobre eunucos – mas já se sabe que em casos de perda de testículos, por acidente ou tratamento para câncer de próstata, pode haver sintomas similares à menopausa, perda de libido, risco aumentado de osteoporose, aumento de peso, alteração na distribuição de gordura e perda muscular, entre outros.
A dança dos hormônios é um dos processos mais fascinantes da medicina e ainda estamos aprendendo com ela.