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De amante a presidente americana: Kamala Harris sonha alto

Linda, articulada e bem conectada, senadora democrata só pensa naquilo, a Casa Branca em 2020; só precisa combinar com Donald Trump

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 21 jul 2017, 13h22 - Publicado em 21 jul 2017, 10h38

Ela não é a primeira mulher que começou na carreira como amante de político, mas pode ser a primeira a se tornar presidente dos Estados Unidos (no fim desta reportagem está quem já fez isso em outros países).

O condicional “pode” é usado com extrema liberalidade. Kamala Harris, senadora pela Califórnia, está testando. Numa primeira e, por motivos óbvios, muito imprecisa pesquisa de opinião, ela teria 41% dos votos, contra 40% para Donald Trump.

A senadora em primeiro mandato está as águas de um mar praticamente aberto. Não existe nenhum “candidato natural” pelo Partido Democrata – como um Obama ou um Clinton – para 2020.  Os estrategistas políticos americanos chamam esse tipo de de político “candidato baleia”.

Na falta da baleia, peixes de todos os tamanhos se animam. O leque de possibilidades aumenta diante das divisões entre as correntes internas do partido.

A ala mais à esquerda quer, como é autoexplicativo, ir mais à esquerda: martelar mais ainda as questões de raça, gênero, etnia e correlatos. Ou seja, levantar as bandeiras identitárias, reforçando-as com o distributivismo de praxe.

Esta aliança entre as camadas mais pobres, na base, e as mais elitistas, no topo, não deu certo com Hillary Clinton. Mas seus defensores acham que o governo Trump afundará no descrédito, ou coisa pior, deixando o campo livre para ideias que eram exóticas e se tornaram dominantes entre formadores de opinião, incluindo a grande imprensa, hoje fortemente à esquerda do espectro político.

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SANDERS DE SAIA

A ala mais centrista do partido que atrair de volta um de seus componentes mais tradicionais, a classe média branca. Só para lembrar: classe média nos Estados Unidos abrange operários qualificados, encanadores, pintores, eletricistas e outras profissões compostas, em geral, por pessoas que não fizeram faculdade ou concluíram apenas os dois anos básicos de formação superior, mas têm um bom padrão de vida, incluindo casa com jardim e carros na garagem – além de dívidas, claro.

Só um naufrágio muito espetacular de Trump traria a massa desses eleitores para o lado de Kamala Harris, que é praticamente um Bernie Sanders de saia – com pernas, muito, muito melhores do que o veterano senador socialista que encostou em Hillary durante as primárias.

Kamala parece ter sido inventada num laboratório dos sonhos da elite liberal americana. Começando pela cor da pele. Ela é filha de mãe indiana tamil, um grupo étnico da Índia e do Sri Lanka de pele mais escura, e pai jamaicano, ambos professores universitários.

Nos Estados Unidos, é considerada negra. Mas, como Obama, vem de uma família com altíssimo nível de instrução, o que a distingue da população negra majoritária, a começar pela linguagem.

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Com olhos esverdeados, cabelos longos e lisos, dentes de uma perfeição só encontrada em Hollywood ou na política americana e ótimo currículo, Kamala provavelmente faria carreira por conta própria. Mas isto continuará no terreno das hipóteses.

NAMORADA FIXA

Suas primeiras nomeações para cargos públicos, na cidade de São Francisco, foram feitas por Willie Brown. Na época, ele era presidente da câmara de deputados da Califórnia. Tinha 60 anos e, ela, 29.

Foi um relacionamento longo, a ponto de Kamala ser descrita como “namorada fixa”, embora Brown, um político folclórico que depois seria eleito prefeito de São Francisco, continuasse casado com a mulher original.

Brown, conhecido pelas roupas de dândi e os muitos casos amorosos, morreu em 2004. Kamala continuou na política, ocupando cargos municipais e estaduais equivalentes a secretária da Justiça, que são eletivos nos Estados Unidos. Ela ganhou projeção nacional quando Barack Obama a elogiou como “a secretária da Justiça mais bonita do país”.

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Depois, pediu desculpas pela referência à aparência dela – o tipo de comportamento politicamente correto que, pelos exageros, ajudou a eleger Donald Trump.

Do apoio ao aborto em todas as fases da gravidez à oposição à pena de morte, à posse de armas e a controles imigratórios, Kamala preenche todos os quesitos do manual liberal (na definição dos conservadores, defende a vida de criminosos estrangeiros e a morte de bebês americanos, desde que no útero da mãe).

Ela também já está fazendo o circuito dos pré-candidatos democratas. Foi aos Hamptons, reduto de bilionários generosos com o partido, e contratou a mesma empresa de promoção online que atendeu Bernie Sanders (Revolution Messaging LLC, é o nome moderninho).

HOBBES OU HOBSON

Estreante no Senado, tem assumido uma postura agressiva nos depoimentos de ministros do governo Trump. Um bate-boca mais acalorado com o general John Kelly, do Departamento de Segurança Interna, consagrou Kamala aos olhos da oposição democrata.

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Até os republicanos deixaram passar um escorregão retórico dela. Na tentativa de enquadrar o general no grito, disse que os imigrantes ilegais são constrangidos a fazer uma “escolha hobbesiana”.

O filósofo inglês do século 16, Thomas Hobbes, com suas conhecidas distopias, não tem nada a ver com o termo “escolha de Hobson’, ou hobsoniana. Apesar de dividir espaço, geográfico época e prenome, Thomas Hobson se tornou sinônimo do sistema “pegar ou largar”. Era dono de um haras e oferecia só as seguintes escolhas aos clientes: pegar o cavalo da primeira baia ou nenhum outro.

Quem liga para contrato social quando uma política promissora, com não apenas uma cara nova como também bonita, é altamente especializada em contato social?

Kamala Harris circula nos meios mais badalados do circuito político-intelectual. A irmã dela, Maya, também advogada, é comentarista política na MSNBC, canal a cabo que está à esquerda da Rádio Havana. O marido de Maya, Tony West,  foi sub-secretário de Justiça durante o governo Obama e hoje é chefão da Pepsi.

Ao contrário de Maya, que se casou com um integrante da elite negra e tem uma filha que já é advogada, Kamala, de 52 anos, não teve filhos só se casou no papel há três anos, com Douglas Emhoff. Ele é branco, o que pode ser considerado por muitas camadas de negros americanos como “traição”, e integrante de uma das mais importantes tribos liberais do país, a dos advogados judeus de Nova York.

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As divisões internas do Partido Democrata só são menores do que as do Republicano. Sendo maioria, os representantes republicanos têm o bônus do governo e o ônus de governar, o que têm feito com extraordinária incapacidade.

O naufrágio da reforma do sistema de saúde foi o atestado mais flagrante até agora dessa incapacidade. Muitos republicanos também convivem mal com Trump, um corpo estranho ao partido. Quando aumenta de popularidade, Trump tem aliados republicanos; quando cai, tem adversários internos – uma situação conhecida por presidentes de outras plagas.

TRAÍDA FAMOSA

No ambiente de baixa definição do momento, as escolhas não são hobsonianas. Só para dar um exemplo: circula entre democratas o balão de ensaio de uma candidatura presidencial de Mark Zuckerberg, o jovem,  bilionário e geralmente pouco apreciado dono do Facebook (Suckerberg é um de seus apelidos publicáveis).

Com toda essa bagagem, Zuckerberg teria exatamente os mesmos 40% dos votos de Kamala Harris numa hipotética eleição contra Trump. O fato de que ele seja muito mais conhecido do que ela favorece a senadora californiana. Mas eleição é o tipo de ambiente de alta circulação de informações.

“Hoje, ela franze as sobrancelhas diante da ‘corrupção política’ do governo Trump”, escreveu no American Spectator o comentarista conservador George Neumayr, que flagrou a confusão hobbesiana. “Mas Willie Brown, parafraseando Oscar Levant, a conheceu antes que fosse virgem.”

Ter iniciado carreira dividindo a cama com político também não é exatamente uma situação excepcional. A própria Hillary Clinton só se tornou senadora, secretária de Estado e candidata presidencial por ser não só a mulher de Bill Clinton, como a traída mais famosa da república.

Mas, nesse quesito, ninguém bate a Argentina: Cristina Kirchner foi precedida pelo marido na presidência. Evita Perón seria candidata a vice e eventualmente até substituta do Juan Domingo Perón se o câncer precoce não a tivesse matado.

Perón persistiu e emplacou outra amante do ramo do entretenimento noturno, promovida a esposa, a ex-dançarina de boate conhecida como Isabel Martínez, a Isabelita. Ela foi vice do marido na trágica restauração do peronismo e, com a morte dele, presidente tão formidavelmente incompetente que abriu caminho à monstruosa ditadura militar argentina.

Um risco que a presidente Kamala, felizmente, não enfrentaria.

DESCULPAS: Willie Brown saiu da prefeitura em 2004. Para alguns políticos, isso significa a morte, mas ele continua em pé. Perdão pelo erro.

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