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Brancos podem interpretar negros? E judeus? ‘Blackfishing’ é racista?

Dá para sentir que é uma encrenca tremenda: discussões raciais envolvem mundo artístico, com resultado obviamente explosivo

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 18 out 2021, 07h34 - Publicado em 18 out 2021, 07h23

Para quem ainda nem se deu conta da existência do Little Mix, a discussão envolvendo uma de suas integrantes, Jesy Nelson, pode soar misteriosa.

A coisa trata de um comportamento chamado ‘blackfishing”, expressão inventada para descrever quem, tendo a tez clara, tenta imitar o estilo e o balanço de artistas negros.

É disso que a cantora Jesy Nelson foi acusada ao se desligar do grupo e se jogar na carreira solo (“Um dos mais desastrosos lançamentos da memória recente”, na definição algo acrimoniosa do Independent).

Para muitos fãs do grupo pop britânico de quatro garotas (uma loira, uma morena etc etc), foi até uma surpresa: muitos achavam que Jesy era a “morena”, ou racialmente mista. Os cabelos cacheados e até, possivelmente, um toque mais carregado de maquiagem criavam essa impressão.

Quem levantou a questão do “blackfishing” foi uma ex-colega de banda, Leigh-Anne Pinnock, legitimamente mestiça.

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Nicki Minaj, que participa do lançamento de Jesy, entrou na história – e dá para imaginar a quantidade de palavras censuradas que explodiram nas redes sociais.

Foi nelas, claro, que surgiu o fenômeno “blackfishing”, com muitos milhares de jovens imitando a “atitude” de artistas negras no Instagram. Nos casos mais extremos, recorrendo até a cirurgias plásticas. Os preenchimentos labiais não contam porque já viraram padrão em países como a Inglaterra, sob a influência das irmãs Kardashian/Jenner, cujas saliências exacerbadas  por procedimentos também reproduzem padrões associados a corpos negros curvilíneos.

O fenômeno de alguma maneira espelha casos como o da americana Rachel Dolezal, branquíssima nativa de Montana que criou uma vida como se fosse negra e fez carreira na universidade e na tradicional Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de cor.

Mesmo depois que foi exposta, Rachel, com todo direito garantido pela flexível sociedade americana, continuou a levar a vida que escolheu e mudou o nome para Nkechi Amare Diallo.

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Se uma professora universitária ou uma cantora se apresenta como se fosse negra, isso é ofensivo ou deveria ser celebrado como uma manifestação de que “a imitação é a mais sincera forma de elogio”? Depois de tanto tempo em que crianças e jovens negras não tinham figuras públicas para se espelhar segundo sua própria etnia, não é bom que agora ocorra o oposto?

Claro que num mundo em que as questões identitárias se tornaram tão proeminentes, isso não acontece. As “brancas negras” são acusadas de apropriação cultural (um conceito que, se fosse aplicado ao Brasil, levaria ao fim de praticamente todas as manifestações culturais).

Mais complicados ainda são casos em que atores interpretam personagens de outra etnia. Aconteceu com a peça Uma Escrava Chamada Esperança, protagonizada pela ex-BBB Gyselle Soares. Houve protestos contra o “embranquecimento” da personagem, uma escrava que protestou em carta ao governador da época contra os suplícios que sofria e veio a se tornar advogada.

Um caso similar, guardadas as diferenças, está se desenrolando nos Estados Unidos. Personalidades artísticas de origem judia reclamam quando personagens judeus são interpretados por atores de outro perfil.

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Um caso específico envolve o ator Tony Shalhoub (o veterano Monk da série de mesmo nome).

O ator é de família libanesa, árabe e cristã, e interpreta o personagem Abe Weissman na série The Marvelous Mrs. Meisel. Quando surgiu a questão, ironizou que, como ator, foi treinado para não interpretar a si mesmo, mas, justamente, personagens.

Para que o argumento tivesse validade, seria preciso admitir que atores judeus não poderiam interpretar não-judeus.

O que seria de Espártaco sem Kirk Douglas (Issur Danielovich, filho de imigrantes judeus da então Bielo Rússia)? Ou de seu companheiro de filme Tony Curtis (originalmente, Bernard Schwartz)? Poderia o tão Wasp capitão James Tiberius Kirk , de Jornada nas Estrelas, ser confiado a William Shatner, que aos 90 anos voltou a ser notícia pela emocionante voltinha espacial que deu na nave de Jeff Bezos?

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Todo mundo entende que quando atores negros interpretam aristocratas ingleses na série Bridgerton a intenção é fazer um manifesto anti-racista, invertendo expectativas.

O ponto de partida foi a especulação, sem nenhuma base, de que a rainha Charlotte, personagem histórico que aparece na série, seria descendente, em nona geração, de Afonso III de Portugal e sua amante moura, Madragana.

A muito germânica Sophia Charlote de Meklemburg-Strelitz, que se casou com George III, o “rei louco”, com apenas dezesseis anos, foi retratada em alguns quadros com “traços mulatos”, segundo a descrição de seu médico, Christian Friedrich Stockmar.

“Era famosamente feia”, resumiu Desmond Shawe-Taylor, ex-curador da coleção real.

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Na ficção de Bridgerton, nada disso aparece. Ao contrário, o ator Regé-Jean Page, inglês de mãe do Zimbabwe, esfacelou corações no planeta inteiro como o arrasadoramente belo e romântico duque de Hastings.

Que tenha sido convincente como um duque negro é uma prova do poder da arte da interpretação – e ninguém reclamou que ele praticamente reencarnou grandes galãs brancos, de Clark Gable em E O Vento Levou a Colin Firth em Orgulho e Preconceito.

Duques negros ou cantoras brancas que copiam o estilo black podem relaxar os estereótipos, o que é sempre bom, mas definitivamente não vão encerrar a discussão.

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