Se o leitor pudesse entrar na pele — de lobo, obviamente — de Vladimir Putin e olhasse para os Estados Unidos e a Europa, a mais rica, livre e avançada combinação de países da história, veria o quê? Provavelmente sociedades enfraquecidas pela prosperidade sem precedentes, tão afluentes que se dão ao luxo de discutir designações para os 76 gêneros correntemente reconhecidos e desprezar qualquer coisa que lembre pátria, senso de identidade e de propósitos comuns ou outros sinais de ignorância nacionalista, tal como são considerados pelas elites bem-pensantes. Os confortos materiais refletem-se num consenso civilizado: guerras são coisa do passado e ninguém, nem mesmo os militares profissionais, deve morrer nelas. A Ucrânia inteira, para chegar ao assunto que nos trouxe até aqui e relembrar Bismarck, o construtor da unificação alemã, não vale os ossos de um único fuzileiro alemão, francês, inglês ou até mesmo americano, da cepa dos últimos guerreiros. Nesse mundo sob o olhar de Putin, os Estados Unidos têm um presidente senil, o primeiro-ministro britânico pode cair por causa de festinhas depois do trabalho e o chanceler alemão é resistente como uma fatia de bolo floresta negra. Os flexíveis latino-americanos nem contam. Por não se permitir líderes cheios de defeitos públicos nem aventuras democráticas, a ordeira e disciplinada China caminha para se tornar uma superpotência hegemônica, na certeza de que dinheiro compra países inteiros, que dirá políticos isolados.
“Bismarck: ‘Só um tolo aprende com seus próprios erros; eu prefiro aprender com os erros dos outros’”
É nesse mundo segundo Putin que surge a oportunidade para a Rússia sair do rebaixamento. Com adversários bem alimentados — cada vez mais com um cardápio à base de superfoods da moda —, aquecidos — cada vez mais com gás russo — e complacentes — cada vez mais avessos a riscos —, vamos ver quem pisca primeiro. Quem não cobrir a aposta da força bruta vai automaticamente para o paredão das potências em declínio. E abre a porta para um processo irreversível: a desconstrução da ordem que parecia incontestável há três décadas, quando a União Soviética cedeu sob o peso do encarquilhamento comunista e a China selou sua entrada na abertura econômica. Tudo isso só poderia redundar em países que acabariam por aderir, mesmo à sua maneira, ao modelo democrático ocidental, cuja superioridade estava definitivamente comprovada.
Essa ordem triunfante hoje é organicamente contestada. A China diz que tem um sistema muito melhor e aponta um modelo para os países periféricos, que nunca chegaram a ter as condições que fizeram a glória das democracias liberais. E a Rússia de Putin chama para a briga adversários que não querem nem pensar em perder a conexão do celular, que dirá entrar numa guerra. É esse o dilema que a quase irrelevante Ucrânia coloca não apenas para os países grandes e poderosos do Ocidente, mas para todos os que não aceitam que a lei do mais forte, seja pela agressão pura e simples, seja pela ameaça dela, possa ser imposta na marra, atropelando a soberania e a autodeterminação, valores que o mundo consolidou a preço de sangue depois da II Guerra.
Hora de lembrar de Bismarck de novo: “Só um tolo aprende com seus próprios erros; eu prefiro aprender com os erros dos outros”.
Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2022, edição nº 2777