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A Grande Guerra: 100 anos do fim e os paralelos errados

Centenário do Armistício de 1918 causa comparações equivocadas com a situação presente e a mesma pergunta de sempre: como foi possível

Por Vilma Gryzinski Atualizado em 9 nov 2018, 16h37 - Publicado em 9 nov 2018, 16h22

As manchetes da primeira página do New York Times do dia 11 de novembro de 1918 são espetaculares até pelos padrões dos muitos outros acontecimentos históricos avassaladores dos cem anos que transcorreram desde então.

Armistício assinado, fim da guerra! Berlim tomada por revolucionários; Novo chanceler pede ordem; Kaiser derrubado foge para a Holanda.”

As quatro linhas resumiam os impérios derrubados e a perspectiva, hoje quase esquecida fora dos livros de história, de uma ascensão comunista  “Vermelhos”, dizia o Times da época  na Alemanha.

Os “vermelhos” perderam, mas a Alemanha foi refundada e ganhou uma designação associada à cidade onde foi assinada uma nova constituição, a República de Weimar.

A data redonda, cem anos, está sendo relembrada em toda a Europa com a solenidade devida à catástrofe humana que devorou 20 milhões de vidas.

Emmanuel Macron passou a semana em peregrinação pela França, fazendo discursos em tom sombrio  e pensando, talvez mais alegremente, em tomar o lugar de Senhor Europa que a futura saída da Senhora, Angela Merkel, deixará em aberto.

O presidente francês circula no espaço da alta cultura, mas também dá golpes abaixo da linha da cintura. Para enfeitar seu perfil europeísta, ele tem forçado os paralelos entre o ambiente político atual e o que nasceu das complicações precipitadas pela Grande Guerra.

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“A Europa enfrenta um risco: o de ser desmembrada pela praga do nacionalismo e de ser atropelada por potências externas. E, assim, perder sua soberania,” disse.

“Numa Europa dividida pelos medos, pela retomada nacionalista, pelas consequências da crise econômica, vemos uma recriação quase metódica de tudo o que ritmou a vida da Europa desde o pós-Primeira Guerra Mundial até a crise de 1929.”

OS CARAS QUEBRADAS

Fazer comparações desse tipo está na moda, principalmente depois do choque levado pelas elites globais com movimentos populistas, a dupla Trump-Brexit e outras manifestações de descontentamento popular com um mundo que parecia blindado contra grandes mudanças.

O mundo de “antes da guerra” e de “depois da guerra” provoca esse tipo de paralelos exagerados por causa dos excessos que o determinismo marxista espalhou em todas as áreas do pensamento.

É o equivalente histórico do ”já que”. Como em: já que a história se repete, já que o capitalismo está em crise e correlatos igualmente infantis.

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O alinhamento de fatos históricos antes e depois da Grande Guerra, como era chamada na época, é de uma complexidade irreproduzível.

Só a lista de causas vai desde as ambições expansionistas alemãs até as pulsões internas do kaiser Guilherme II, inferiorizado com o defeito no braço esquerdo  um traumatismo de parto complicado , a obsessão pela mãe inglesa e a inveja da Real Marinha de seus primos do outro lado do Canal da Mancha.

Sem contar a Guerra dos Balcãs, o lento esfacelamento do Império Otomano, o crescimento da Rússia imperial prestes a ser engolida pela revolução e, sim, as pulsões nacionalistas no Império Austro-Húngaro, que só de línguas, abarcando diferentes identidades nacionais, tinha doze.

 

 

Foi o mais minoritário dos nacionalismos, o dos eslavos da Bósnia Herzegovina, o agente desencadeador, o assassinato do herdeiro do trono imperial austríaco, Francisco Ferdinando, morto no tosco mas bem sucedido atentado durante uma visita a Sarajevo.

É consenso entre historiadores que a guerra iria acontecer de qualquer maneira  a Alemanha trabalhava para isso dia e noite. Como teria se desenrolado sem o atentado de Sarajevo? Impossível especular.

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Mas certamente nenhum dos envolvidos contava com os quatro longos anos de carnificina. “Antes do Natal” tudo estaria resolvido, dizia-se de um lado e de outro.

Por causa das proporções e da maior proximidade temporal da II Guerra Mundial, muitos se esquecem que a França, por exemplo, sofreu mais vítimas durante o período de 1914-1918: quase 1,4 milhão de mortos.

Feridos, foram 4,2 milhões. Os franceses inventaram até uma expressão, os “gueules cassées”, os caras quebradas, para definir os ferimentos faciais típicos da guerra de trincheiras, provocados literalmente por colocar a cabeça para fora.

Nasceram daí as primeiras operações plásticas reconstrutoras, usando cartilagens e enxertos de pele dos próprios pacientes, em fases progressivas, como descobriram, dolorosamente, os pioneiros dos procedimentos.

Muitos elementos associados à II Guerra também fizeram sua estreia, em massa, na I, incluindo tanques, submarinos, aviação bélica e até o primeiro porta-aviões, um navio mercante convertido pela marinha britânica.

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O torturante imobilismo da guerra de trincheiras foi rompido quando a Rússia, já tomada pela revolução bolchevique, assinou um acordo separado com a Alemanha e aliados, em 3 de março de 1918.

Com recursos humanos e materiais liberados, a Alemanha esteve muito perto de ganhar a guerra. A Ofensiva da Primavera fracassou por sua própria ambição  o avanço muito rápido rompeu as linhas de suprimento.

OS MARINES CHEGARAM

E, claro, por não conseguir fechar a conta antes da entrada em massa dos americanos, tirados de seu esplêndido isolacionismo pelas novas responsabilidades de potência mundial.

A diferença que os Estados Unidos fizeram ficou representada pela frase galante de Lloyd Williams, capitão de um regimento dos Fuzileiros Navais deslocado para reforçar os franceses no Bosque de Belleau, reserva de caça perto do rio Marne, uma das grandes frentes de guerra.

Quando os marines chegaram, os franceses já estavam em retirada diante do avanço alemão. Um major francês explicou a Williams que seu regimento deveria fazer a mesma coisa. “Bater em retirada? Que nada, acabamos de chegar.”

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A frase entrou para a história como exemplo do espírito combativo dos marines, mas não fez muito pelo futuro de Williams. Nove dias depois ele estava cego, com o abdômen destroçado por estilhaços. Acabou morrendo durante a evacuação dos feridos.

Dois meses depois, em agosto de 1918, o alto comando alemão já reconhecia a derrota que viria e especulava sobre uma “paz justa”.

Em 24 de outubro, marinheiros alemães começaram a se amotinar, revoltados com uma ordem de combate na guerra já perdida. Em 9 de novembro, o kaiser abdicou.

O armistício foi assinado em Compiègne, às 11 horas de 11/11, no vagão de trem usado como gabinete pelo comandante supremo da Frente Ocidental, o marechal francês Ferdinand Foch  o da avenida chique de Paris.

O tratado de paz, propriamente, foi assinado em Versalhes só no ano seguinte. Os revolucionários alemães chegaram a tomar a Baviera, onde decretaram a instauração de uma república popular e o fim da propriedade privada. Não foram além de 1919.

Na mesma Baviera, um cabo retornado da guerra com as cordas vocais afetadas pelo gás mostarda começou a praticar seus poderes oratórios. Entrou para um partido minúsculo, de apenas 40 militantes. A humilhação da Alemanha e as exigências do Tratado de Versalhes viraram temas importantes.

Vinte anos depois, em 22 de junho de 1940, o ex-cabo, elevado a líder supremo, mandou tirar do museu da cidadezinha de Compiègne o vagão do armistício. Adolf Hitler exigiu que os franceses assinassem a rendição à Alemanha nazista exatamente no mesmo lugar e no mesmo ambiente.

Fica a lembrança para quem acha que a história se repete automaticamente ou quer forçar paralelos simplistas.

“Eu não escondo nenhuma página da história, mesmo quando é mais complexa do que gostaríamos”, defendeu-se Macron depois das reações negativas à inclusão do marechal Philippe Pétain entre os homenageados numa cerimônia militar.

“Ele foi um bom soldado durante a I Guerra”, disse o presidente francês. O bom soldado, evidentemente, foi o mesmo chefe do governo colaboracionista na parte da França sob ocupação nazista durante a II Guerra.

Numa coisa, pelo menos, acertou: a história é cheia de complexidades, não de simplificações.

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