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A festa da “farinha”: um problema para a primeira-ministra da Finlândia

O momento para o país nórdico, eternamente à sombra da Rússia, é de perigo existencial, não para perder tempo com a baladinha da chefe do governo

Por Vilma Gryzinski 19 ago 2022, 07h51

Lá vamos nós citar Churchill de novo: “Finlândia – soberba, não, sublime. Nas garras do perigo, a Finlândia mostrou o que homens livres são capazes de fazer. O serviço prestado pela Finlândia à humanidade é magnífico”.

O “serviço” foi resistir durante três inacreditáveis meses à poderosa União Soviética, numa guerra no meio da guerra, em 1939, provocando 400 mil baixas no Exército Vermelho. Até Stalin ficou impressionado: andando de esqui, disse ele, os finlandeses conseguem “escalar pinheiros, esconder-se entre os galhos, cobrir-se com um lençol branco ou camuflagem e se tornar completamente invisíveis”.

Os problemas atuais da Finlândia – ameaças russas, redobradas pela histórica decisão do país de entrar para a Otan – empalidecem diante do passado heroico e ao mesmo tempo trágico. Apesar da resistência, a Finlândia afinal teve que ceder 10% do seu território e abraçar uma política de neutralidade forçada.

Mas política é política (e fofoca é fofoca ) e a Finlândia ficou dominada pelo vídeo em que a primeira-ministra Sanna Marin aparece num apartamento, com uma turma de amigos – mais amigas, na verdade – fazendo algo que a humanidade inteira abaixo dos 50 anos já fez: cantando, dançando e fazendo carão na frente de um celular.

Ela nega que, ao fundo, apareça o refrão: “Gangue da farinha”. O significado é exatamente o mesmo que no Brasil. 

Sanna aparece de regatinha e moletom, ao contrário das infinitas variações de terninho preto com top branco que usa nas funções oficiais. Ela tem 35 anos, é esbelta e bonita e não faz pregações morais como a chatíssima Jacinda Ardem, a primeira-ministra da Nova Zelândia, que concorre na mesma faixa. Na vida civil, já foi fotografada de shortinho jeans com jaqueta de couro, uniforme universal dos shows de rock.

Num país como a Finlândia, em que a privacidade é preservada ao ponto da barreira intransponível de comunicação entre as pessoas, em nome da não invasão de espaços pessoais, a reação à baladinha da primeira-ministra foi excepcional. Percebendo o tamanho da encrenca, ela acabou dizendo que nunca usou drogas e estava disposta a fazer um teste para provar isso. “Não tenho nada a esconder”, garantiu, na típica atitude de políticos que têm muito a jogar para baixo do tapete.

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A proposta de um teste de drogas é uma atitude excepcional para tempos excepcionais. Ao contrário da imagem de país neutro e pacifista, a Finlândia se prepara há muitas décadas para voltar a enfrentar o vizinho muito mais poderoso e eternamente ameaçador com o qual tem a infelicidade de dividir 1 340 quilômetros de fronteira (“Não podemos fazer nada com relação à geografia”, disse Stalin a um representante do governo finlandês antes da guerra, referindo-se ao fato de que Leningrado, base vital da indústria soviética, ficava a menos de 30 quilômetros da divisa entre os dois países. “Já que Leningrado não pode mudar de lugar, vamos ter que mudar a fronteira”).

Praticamente toda a infraestrutura existente acima da terra é reproduzida abaixo dela e as forças armadas finlandesas treinam intensamente para sua especialidade, a guerra de inverno.

A invasão da Ucrânia provocou uma profunda transformação no país: a opinião pública e o establishment político, inclusive o partido de centro-esquerda liderado por Sanna Marin, passaram a apoiar o fim da neutralidade – quase fictícia – e, juntamente com a Suécia, pediram o ingresso na Otan.

O famoso artigo número 5 da carta da Otan garante que o ataque contra qualquer um de seus integrantes exige uma resposta coletiva de todos os demais – e, acima de todos eles, dos Estados Unidos.

É este artigo que dá uma muito relativa tranquilidade a antigos satélites soviéticos como os países bálticos e a Polônia.

É difícil para quem não tem a história dramática da região no currículo entender o quanto os países dessa esfera têm medo e desconfiança em relação à Rússia. A Finlândia passou uma parte de sua trajetória sob domínio da Rússia e da Suécia. A população finlandesa da região da Ingria, que ficou em território soviético depois da Revolução, foi simplesmente exterminada pelo clássico método da deportação em massa em condições indescritíveis.

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Este passado de terror coletivo, revivido agora pelas constantes ameaças aos vizinhos que passaram a fazer parte do vocabulário corriqueiro dos meios de comunicação da Rússia, explica decisões como a tomada em conjunto pela Finlândia e a Estônia de reduzir em 90% os vistos turísticos fornecidos a cidadãos russos.

Por causa das sanções europeias, a única maneira, para os russos, de ir a países da região é viajar de carro para um vizinho e, a partir dele, pegar um voo mais longo. Desde ontem, os vistos turísticos para russos estão cancelados pela Estônia, exceto em casos que tenham motivos humanitários ou familiares.

Uma festinha corriqueira de uma primeira-ministra como Sanna Marin – a segunda mais jovem chefe de governo do mundo, depois do chileno Gabriel Boric – tem importância bem relativa num momento como o atual. O que realmente interessa foi ressaltado por mais uma invasão do espaço aéreo finlandês feita ontem por dois MiG-31 russos, uma tática rotineira de provocação.

“Depois da vitória da Ucrânia, vou cair na balada tão pesado que até Sanna Marin vai ficar com inveja”, brincou no Twitter o jornalista ucraniano Illia Ponomarenko.

Seria bom se fosse verdade, mas a realidade é que o país de Sanna, como os outros da região, passou a viver num mundo muito mais perigoso desde 24 de fevereiro, quando a Rússia invadiu a Ucrânia e desestabilizou vizinhos que têm todos os motivos do mundo para achar que a coisa não vai ficar por aí.

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