Valter Hugo Mãe: ‘O Brasil é uma lição para os portugueses’
José Saramago o definiu como um “tsunami” literário, em 2007, quando seu romance remorso de baltazar serapião ganhou o prêmio que leva o nome do Nobel português. Não é para menos: com um estilo próprio, marcado por letras minúsculas e difícil de situar entre o português de Angola, onde nasceu em 1971, o de Portugal, onde vive desde […]
José Saramago o definiu como um “tsunami” literário, em 2007, quando seu romance remorso de baltazar serapião ganhou o prêmio que leva o nome do Nobel português. Não é para menos: com um estilo próprio, marcado por letras minúsculas e difícil de situar entre o português de Angola, onde nasceu em 1971, o de Portugal, onde vive desde menino, e o do Brasil, uma de suas mais fortes influências, Valter Hugo Mãe se tornou uma voz única e promissora das letras portuguesas. Sua produção, aliás, não se restringe às letras. Hugo Mãe é escritor e editor, mas também artista plástico e músico. E um artista carismático. Na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em que lançou a máquina de fazer espanhóis, ele foi um dos que mais agradou o público, pelo conteúdo e pela disposição em falar e circular. Isto é, aliás, o que ele volta a fazer nesta terça-feira, quando fala de literatura no projeto “34 Leituras Íntimas”, da editora 34, na Casa de Francisca, em São Paulo (rua José Maria Lisboa, 190, Jardim Paulista, 19 reais, a partir das 21h). Confira abaixo uma amostra do que Valter Hugo Mãe tem a dizer, nos melhores momentos de sua entrevista a VEJA Meus Livros.
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Seu romance o remorso de baltazar serapião é visto por muitos como um livro alegórico. Essa leitura também pode ser aplicada a máquina de fazer espanhóis? Sim, é a invenção de uma linguagem antiga a enganar o leitor, a levá-lo a pensar que determinado assunto é coisa antiga, para depois surpreender-se com a sua contemporaneidade. O livro o remorso de baltazar serapião fala da violência dos homens contra as mulheres, uma certa manipulação da mulher pelo homem. O mundo é padronizado pelo homem, a mulher entra de enfeite, quando não deveria ser assim. Chega-se à conclusão de que existe uma idade média mental onde não há igualdade de sexo. Em a máquina de fazer espanhóis, a linguagem já não pretendia aludir a uma antiguidade. A história é masculina. Os homens sonharam com uma coisa que não cumpriram. É um desajuste entre o que se diz e o que se faz.
De que modo o ocaso dos personagens do romance se relaciona com a situação atual de Portugal? Os personagens principais procuro que sejam verídicos. Hoje, sinto que as pessoas são muito mescladas. No coração, todos são comunistas, mas no estômago todos são capitalistas. Meus personagens não sabem se têm saudades da ditadura, não sabe se vive-se melhor num regime autoritário ou num regime democrático. Eu cresci na década de 1980, vi o muro de Berlim cair. É frustrante ver como está Portugal agora, percebe-se que tudo regrediu.
No livro, o senhor fala que os portugueses recebem notícias sempre. De que modo o Brasil é visto pelos portugueses? O Brasil é visto como um país de sol, um paraíso tropical. Tem comida boa e um povo criativo, capaz de sobreviver mesmo com suas dificuldades. É um país que está a levantar-se e os portugueses acreditam que será uma potência econômica no século XXI. Meus amigos portugueses adoram o Brasil, adoram viajar para o Nordeste. Eu nunca fui, mas tenho curiosidade. O Brasil é uma grande lição para os portugueses.
A morte é um tema necessariamente presente em a máquina de fazer espanhóis. É também um tema constante na sua vida? Meus pais perderam um filho quando ele tinha um ano. Chamava-se Casimiro. Eu nasci depois. Mesmo tendo morrido, ele esteve sempre muito presente na minha casa, na minha infância. Ele ocupava muito espaço. A tristeza dos meus pais contagiava. Eu, então, desde novo, achava que se poderia morrer com um ano, depois com oito anos e por aí vai. Faz 11 anos que meu pai morreu e sinto que a morte se tornou ainda mais presente para mim (no final de a máquina de fazer espanhóis, Hugo Mãe diz que escreveu o romance, constituído de personagens da terceira idade, para conviver com o pai que morreu antes de ficar velho).
Há diferenças entre o português do Brasil, de Angola e de Portugal. Você é de Angola, mora em Portugal e recebe influência de brasileiros como Guimarães Rosa. Como definiria a sua língua? Sim. Em Portugal, fala-se uma língua mais pudica, ortodoxa. Angola é uma escangalhação. Misturam com dialeto e então vão esquecendo a língua. No Brasil, o uso da língua é mais informal. Inventa-se uma palavra hoje e amanhã ela já está na televisão para todo mundo falar.
Você já deve estar cansado de falar sobre isso, mas essa pergunta não pode faltar: por que escrever sem maiúsculas? Eu escrevi uma espécie de tetralogia com esses quatro romances e, neles, quis criar o efeito de fala, de oralidade para dar ao leitor a sensação de estar num discurso real, natural como aquilo que ele estaria a dizer, a pensar. Pontuação é demasiado, parece que politiza a língua.
E por que um único capítulo de a máquina de fazer espanhois é escrito em maiúsculas e com narrador em terceira pessoa? Eu roubei dois personagens de Francisco Xavier Viegas, dois policiais. E naquela situação do livro, com aqueles diálogos, vi que deveria usar o jeito comum. Mas no meu próximo romance vou usar letra maiúscula, meu nome estará em maiúscula, vocês vão achar que eu virei um escritor normal.
Por Lilian Fontes
Colaboração de Maria Carolina Maia