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A psicóloga e pesquisadora Ilana Pinsky reflete sobre saúde mental e suas conexões com a nossa sociedade
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O que está em jogo quando escolhemos o fim?

Não há uma definição única e universalmente aceita para eutanásia ou morte assistida; questão ganhou destaque com caso do poeta e filósofo Antônio Cícero

Por Ilana Pinsky*
27 nov 2024, 08h00

Alguns temas são tão delicados e cercados por tabus culturais que tendemos a evitá-los, até que a realidade nos force a enfrentá-los. A eutanásia é um deles. Seja chamada de “morte assistida por médicos”, “suicídio assistido” ou outro termo, a prática envolve dilemas éticos profundos e desafia nossas concepções de autonomia e dignidade no fim da vida. Não há uma definição única e universalmente aceita para eutanásia ou morte assistida.

Frequentemente, diz-se que na eutanásia o médico administra a medicação, enquanto na morte assistida o próprio paciente o faz. Na morte assistida há um obstáculo para pacientes com limitações físicas graves, como tetraplégicos ou pessoas com doenças neurológicas, que se veriam excluídos do procedimento pela incapacidade de tomar sozinhos a medicação. No entanto, o cerne da questão não é tanto quem administra, mas sim o fato de estarmos diante do desejo explícito de encerrar a própria vida em situações de sofrimento extremo. E é justamente essa realidade que nos obriga a encarar nossos próprios medos e preconceitos.

No Brasil, a questão ganhou destaque recentemente com o caso do poeta e filósofo Antônio Cícero, que optou pela morte assistida na Suíça. Sua decisão abalou o público e trouxe à tona o debate que há muito evitamos enfrentar. Diagnosticado com Alzheimer em 2023, Cícero decidiu que preferia morrer antes de perder completamente a capacidade cognitiva, um cenário inevitável em estágios avançados da doença. Sua decisão não foi impulsiva; ele se preparou meticulosamente com apoio do marido para o momento, informando apenas seus amigos e familiares mais próximos um dia antes de partir.

Sua carta de despedida, publicada na imprensa, foi direta e tocante, uma rara demonstração pública de como terminar a própria vida pode ser vista não apenas como uma escolha de desespero, mas como um ato de controle e dignidade diante do sofrimento. A história de Cícero ecoa outras histórias pelo mundo, lembrando o caso do Dr. Jack Kevorkian, o “Dr. Morte”, que trouxe o debate sobre eutanásia à esfera pública nos anos 1990.

Kevorkian, patologista americano, auxiliou centenas de pacientes a morrer, muitas vezes filmando os procedimentos, para forçar o debate ético e legal sobre o direito ao suicídio assistido. Ele não deixou um sucessor direto, mas seu trabalho abriu caminho para que países ao redor do mundo criassem ou ampliassem legislações sobre o tema. No Brasil, a eutanásia e a morte assistida são consideradas crimes. A Constituição de 1988 garante o direito inviolável à vida, o que é interpretado como um obstáculo significativo para qualquer movimento em direção à legalização.

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Contudo, o Conselho Federal de Medicina permite a ortotanásia — a suspensão de tratamentos que apenas prolongam o sofrimento de pacientes terminais. Isso demonstra que há uma pequena abertura para respeitar a vontade dos pacientes, mas ainda longe de oferecer a autonomia que vemos em outros países. Em contraste, países como Bélgica, Holanda, Suíça, Austrália, Suíça e Canadá têm programas de eutanásia/morte assistida legalizados e amplamente regulamentados.

No Canadá, o programa MAID (Medical Assistance in Dying) é abrangente, embora pessoas com transtornos mentais só sejam elegíveis se também apresentaram uma condição física “grave e irremediável”. Para se ter uma ideia do alcance do programa, em 2022, 13.241 pessoas morreram utilizando o MAID, representando mais de 4% das mortes no país. Na Austrália, a eutanásia é legal na maioria dos estados do país para adultos com uma doença incurável, progressiva e terminal.

Desde a década de 1940, a Suíça autoriza o auxílio ao suicídio e é um dos poucos países que permite que estrangeiros acessem o procedimento. Contudo, a legislação suíça exige que apenas o próprio paciente administre a medicação, excluindo qualquer intervenção direta de terceiros. Na Holanda e na Bélgica, até mesmo pacientes com transtornos mentais severos que não melhoraram com múltiplos tratamentos podem ser qualificados para a morte assistida. Na América do Sul, Equador e Colômbia despenalizaram a eutanásia.

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Nos Estados Unidos, apenas alguns estados, como Oregon, Califórnia e Nova Jersey, permitem a prática, e sempre com restrições rigorosas. Em geral o paciente precisa padecer de doença física terminal com expectativa de vida de não mais de seis meses e certificada por mais de um médico.

Helen Taler, irmã do ex-prefeito de Nova York Ed Koch, ilustra como essa legislação pode proporcionar uma oportunidade rara de planejamento e controle sobre o fim da vida. Aos 92 anos e após décadas enfrentando um câncer incurável, Helen organizou sua morte assistida com uma serenidade impressionante, agendando-a para um sábado, por ser mais conveniente para seus filhos. Mostrando um nível incomum de controle sobre o próprio destino, ela chegou a telefonar para a seção de óbitos do jornal The New York Times, uma semana antes do procedimento, para discutir os detalhes do anúncio.

Esses casos levantam uma questão inevitável: uma morte agendada, conhecida e organizada, resulta em um luto mais suave ou mais sofrido para a família? Não há uma resposta fácil. Um estudo qualitativo de 2022 analisou as experiências de luto e reações sociais de 27 pessoas na Holanda que perderam seus parceiros. Doze deles sofriam de transtornos mentais e morreram por morte assistida por médicos e 15 por suicídio.

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Os resultados mostraram que o luto após a morte assistida foi menos sofrido do que o luto por suicídio. Em casos de morte assistida, o fato de a solicitação ter sido avaliada por médicos e aprovada ajudou familiares e amigos a compreenderem o sofrimento mental do falecido, enquanto no caso de suicídio, os parceiros sobreviventes às vezes tiveram de enfrentar questionamentos legais e maior estigma social.

Outro estudo, uma revisão sistemática analisou dez artigos sobre o impacto do luto em pessoas que perderam entes queridos por eutanásia ou suicídio assistido. Os resultados mostraram que, em geral, essas pessoas apresentaram níveis de luto, saúde mental e estresse pós-traumático semelhantes ou inferiores aos de quem perdeu alguém por morte natural. O envolvimento no processo de decisão e o sentimento de respeitar a vontade do falecido parecem facilitar o luto.

Contudo, as limitações dos estudos incluem amostras não representativas e retrospectivas, destacando a necessidade de pesquisas mais robustas à medida que mais países legalizam essas práticas. A idade do paciente, a comunicação com a família, o estado de saúde são alguns dos fatores que influenciam o impacto emocional da eutanásia.

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Profissionais experientes como a Dra. Ellen Wiebe, que atua no programa MAID no Canadá, acreditam que o direito de escolha é fundamental. Wiebe, que também realiza abortos, vê as duas práticas como extensão do mesmo princípio de autonomia sobre o próprio corpo. Em entrevistas, ela revela que nunca se arrependeu de ter facilitado um procedimento de eutanásia, embora reconheça que, em alguns casos, tenha havido discordância entre a vontade do paciente e a da família. “Eu sigo o desejo do paciente”, diz ela, defendendo que a dignidade e a autonomia devem prevalecer mesmo nas situações mais difíceis.

No entanto, a legalização da eutanásia levanta questões espinhosas e merece um debate cuidadoso, que extrapola a garantia do direito de escolher. Um dos receios mais frequentes é que pessoas vulneráveis — especialmente aquelas em situação de pobreza, com doenças crônicas debilitantes, ou que sentem que são um peso para suas famílias — possam ser sutilmente pressionadas a optar pela morte assistida. A possibilidade de que o desejo de “não ser um fardo” acabe se tornando um motivo oculto para a decisão de morrer é real, especialmente em sociedades em que o custo dos cuidados de saúde é alto e os recursos são limitados.

Outro ponto de preocupação é o risco de que sistemas de saúde, públicos ou privados, possam ver a eutanásia como uma alternativa econômica para tratamentos prolongados e caros. Isso poderia criar uma pressão implícita para médicos e pacientes, distorcendo o verdadeiro propósito do procedimento. Como garantir que a escolha seja sempre genuína e não influenciada por fatores financeiros ou familiares? Essas questões são legítimas e precisam ser colocadas à mesa. No entanto, evitar a discussão sobre a eutanásia por medo desses dilemas não elimina o problema — apenas perpetua o sofrimento.

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A falta de opções para pessoas com doenças terminais e crônicas muitas vezes resulta em mortes solitárias, dolorosas e desassistidas. O silêncio sobre o tema não impede os suicídios em contextos desesperadores, em que pessoas sem acesso a uma morte digna e assistida, acabam tomando medidas drásticas por conta própria. É um equilíbrio delicado que precisamos encontrar: proteger os mais vulneráveis, evitando abusos e pressões externas, ao mesmo tempo em que garantimos autonomia e dignidade para aqueles que, conscientemente, escolhem encerrar a vida de maneira controlada e compassiva. Falar abertamente sobre o fim da vida é complexo e incômodo, mas essencial.

* Ilana Pinsky é psicóloga clínica, doutora pela Unifesp. É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto), foi consultora da OMS e da OPAS e professora da Universidade Columbia

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