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A psicóloga e pesquisadora Ilana Pinsky reflete sobre saúde mental e suas conexões com a nossa sociedade
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Maconha medicinal: ainda há mais fumaça que evidência científica?

Dando sequência a uma série de artigos sobre o tema da cannabis, colunista dá um panorama sobre os estudos na área e o que ainda falta comprovar

Por Ilana Pinsky
Atualizado em 13 Maio 2024, 22h59 - Publicado em 7 ago 2023, 08h15

Depois de explorar por aqui a trajetória da cannabis de droga ilegal a mercado regulamentado em expansão, vale a pena falar do promissor campo da maconha medicinal, ainda rodeado de incertezas.

A própria definição do que se trata é sujeita a disputas. Basicamente, a cannabis medicinal é um termo amplo para extratos ou para a vaporização da planta, utilizados como remédios para reduzir o sofrimento ou diminuir os sintomas de uma condição médica.

Mas a expressão tem sido usada de outras formas também, inclusive por pessoas que fumam a planta e acreditam que isso vai trazer benefícios médicos, por mais que faltem evidências científicas a seu favor.

Condições de saúde resistentes a tratamento e estudos sobre os potenciais benefícios terapêuticos dos canabinoides encontrados na planta da maconha encorajaram o movimento da cannabis medicinal pelo mundo. Entre pacientes com câncer que sofrem com efeitos colaterais do tratamento, multiplicaram-se relatos de que a maconha ajudava a aplacar náuseas e a melhorar o apetite e a qualidade de vida.

Inicialmente, os pacientes que foram sendo registrados para o programa ou pesquisas nos Estados Unidos tinham acesso a variadas quantidades da planta, que geralmente era vaporizada através de um dispositivo chamado Volcano ou fumada. Médicos dos estados que foram legalizando o uso medicamentoso da maconha davam autorizações específicas para esse tipo de consumo.

Até hoje, os programas e seus regulamentos variam muito de estado para estado nos EUA, assim como o controle, às vezes inexistente, da qualidade da planta. Na maioria dos casos, os pacientes podem cultivar sua própria provisão, por exemplo.

No entanto, a maconha é uma substância que pode causar dependência, particularmente quando a rota de administração é o fumo (pela rapidez de seu efeito). Quando o número de condições de saúde potencialmente beneficiada pelos canabinoides foi aumentando, ficou claro que a inalação não seria a forma ideal de ingestão da droga, pelo menos não para quem quer se valer das suas propriedades terapêuticas.

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Diversas associações médicas são contrárias a essa via de uso por conta dos prejuízos causados ao pulmão, mas focarei nesta e em outras questões do uso recreativo no próximo artigo.

+ LEIA TAMBÉM: Guinada brasileira rumo à descriminalização da maconha

Terreno fértil

As pesquisas sobre a química da cannabis que resultaram no desenvolvimento do campo da maconha medicinal começaram no século 19. Na década de 1960, o israelense Raphael Mechoulam isolou dois dos principais princípios ativos da maconha: o canabidiol (CBD) e o tetra-hidrocanabinol ou THC.

O THC é responsável pelo “barato”, que quem faz uso não médico de maconha procura. Nessa época, ainda se achava que o CBD era um princípio inativo (que “não servia para nada”). Mas, na verdade, descobriu-se que o CBD tem importante potencial para ações terapêuticas, embora seja um princípio não psicoativo (ele não dá “barato”).

Em 1973, Mechoulam fez parceria com o pesquisador brasileiro Elisaldo Carlini e a dupla observou efeitos anticonvulsivantes do CBD em um estudo em animais. Anos depois, em 1980, aparecem as primeiras pesquisas sobre esse efeito em pessoas.

Em 2018, o primeiro medicamento à base de CBD foi aprovado nos Estados Unidos pela US Food and Drug Administration (FDA). Essa medicação, Epidiolex, que é tomada oralmente, também aprovada pela Anvisa no Brasil, é indicada para o tratamento de síndromes epiléticas (raras e que não respondem a outros tratamentos) em crianças.

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Outra medicação, liberada em várias partes do mundo, includindo o Brasil (mas não pelo FDA ainda) é o Sativex, que é um spray oral que tem tanto CBD quanto THC e é indicado para os espasmos dolorosos relacionados à esclerose múltipla. As únicas outras medicações aprovadas até agora pelo FDA são o Dronabinol e o Nabilone (ambos contendo formas sintéticas ou semi-sintéticas de THC) para aliviar efeitos colaterais da quimioterapia (náusea, vômito..) e a falta de apetite em pacientes com HIV/AIDS. Nesses casos, considera-se que há provas sólidas para indicação da cannabis medicinal.

Mesmo que a indicação comprovada para os remédios existentes seja limitada, muitos países dão permissão para seus médicos prescreverem canabinoides para um número de condições de saúde muito maior. Por exemplo, em Israel, o Ministério da Saúde inclui entre as condições tratáveis com maconha medicinal, além das citadas acima, dores crônicas, distúrbios do sono, transtorno de estresse pós-traumático, ansiedade e autismo.

Dependendo do estado em que o indivíduo mora nos EUA, ele pode ser aceito para tratamento com maconha medicinal para Alzheimer, enxaquecas, doença de Crohn, glaucoma, hepatite C e Parkinson. Há, portanto, uma desconexão entre as necessidades dos pacientes e as evidências científicas.

Uma das razões da escassez de resultados conclusivos para a ciência na área – em outras palavras, um número insuficiente de ensaios clínicos randomizados de qualidade feitos em humanos – é que a maconha é ainda considerada em grande parte dos países uma droga ilegal.

Vejam o exemplo dos EUA, país com maiores recursos financeiros para pesquisas clínicas. Trinta e oito estados americanos legalizaram a maconha medicinal e 23 legalizaram o uso não medicinal também. No entanto, em nível federal, a droga é ainda considerada não só ilícita como classificada junto a substâncias como a heroína em termos de periculosidade.

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Dessa forma, o National Institute of Health (NIH) destina ainda uma parte muito pequena de sua verba para pesquisas sobre cannabis medicinal. Além disso, como mostra um editorial publicado no Lancet em 2022, ainda é difícil conseguir a aprovação para fazer estudos do gênero. Nos EUA, mas também em outras nações.

Em expansão

De qualquer forma, o número de usuários de maconha medicinal é significativo e crescente. Nos EUA, por exemplo, 3,6 milhões de pessoas estavam inscritas em 2020 para receber medicamentos à base da substância. No Canadá, os números crescem há anos, com mais de 230 mil indivíduos registrados para receber maconha medicinal em 2023; enquanto em Israel, país-chave para as pesquisas sobre a planta, 123 mil pacientes possuem licença para o uso.

E mesmo as pessoas que não estão inscritas em programas oficiais muitas vezes relatam que seu uso tem fins terapêuticos. Há também a proliferação de empresas criando produtos feitos a partir de CBD. Dados da Statista apontam que as vendas desses produtos movimentaram mais de 4 bilhões de dólares em 2022 nos EUA.

Produtos oferecidos incluem balas (para acalmar, dormir e recuperar os músculos), óleos (para  o bem-estar), cremes (para rejuvenescer a pele), além de petiscos para cães (para reduzir o estresse). Não há respaldo científico para esses produtos, cabe ressaltar.

Diagnósticos de saúde mental estão entre as principais justificativas reportadas por pacientes para usar maconha medicinal. Uma pesquisa com 27 mil estadunidenses e canadenses apontou que as principais condições de saúde para as quais os indivíduos usavam maconha medicinal eram: manejar dores (53%), reduzir ansiedade (52%), dormir melhor (46%) e lidar com depressão (40%).

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De fato, pesquisas pré-clínicas e clínicas mostram o potencial dos canabinoides, principalmente do CBD, para o tratamento do medo e da ansiedade. O neuropsiquiatra José Alexandre Crippa, professor titular da USP de Ribeirão Preto e grande nome nos estudos desse campo, relata que seu grupo encontrou efeito ansiolítico do CBD em experimentos com animais e humanos em vários diagnósticos, de transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) a ansiedade social e transtorno bipolar.

As amostras ainda são limitadas, precisando de confirmação com populações maiores. Outra área de interesse é o uso de CBD para o tratamento de dependência química de outras drogas, como os opiáceos. Em apenas um de seus financiamentos, o NIH aportou milhões de dólares para uma pesquisa da School of Medicine at Mount Sinai sobre o uso terapêutico do CBD no tratamento da dependência por heroína. No entanto, na situação atual, demonstrada por revisões da literatura, ainda são necessários ensaios rigorosos que investiguem o uso de cannabis para estas e outras condições.

Então, o resumo dessa (complicada) ópera é o seguinte: há claras evidências de que compostos provenientes da planta da cannabis podem ser uma opção para a redução do sofrimento de pessoas com epilepsias e esclerose múltipla. Em casos compassivos, em situações para as quais medicações tradicionais falharam, há um grande potencial para uso supervisionado, ainda que não para registro de medicamentos.

No caso de algumas condições e populações específicas, isto já está suficientemente provado para que medicações tenham sido desenvolvidas. Em várias outras, os indivíduos se anteciparam à evidência, com resultados incertos.

Ao contrário de outros medicamentos, o desenvolvimento da cannabis medicinal foi impulsionado pelo uso de pacientes a partir de benefícios relatados. Os cientistas e os formuladores de políticas públicas ainda estão correndo atrás.

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Para o desenvolvimento de um bom programa de cannabis medicinal, é necessário que os produtos oferecidos aos pacientes passem pelos mesmo testes científicos rigorosos utilizados para desenvolver todos os outros medicamentos, por meio de ensaios clínicos controlados, com número robusto de pacientes.

Além disso, particularmente os medicamentos contendo o THC precisam ser muito bem avaliados em termos da segurança e é possível que terão algumas contraindicações (crianças e adolescentes, pessoas com histórico pessoal e familiar de dependência química e psicose, gestantes etc.)

E não vamos esquecer que é central equilibrar as necessidades dos pacientes com um forte marco regulatório que proteja essa área tão promissora de interesses industriais puramente financeiros.

* Ilana Pinsky é psicóloga clínica e pesquisadora ligada à Fiocruz. É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto) e foi consultora da OMS e professora da Unifesp e da Universidade Colúmbia (EUA)

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