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Mens sana

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A psicóloga e pesquisadora Ilana Pinsky reflete sobre saúde mental e suas conexões com a nossa sociedade

Inteligência artificial na psicoterapia: e se funcionar melhor que gente?

Estudo clínico mostra que um chatbot pode realmente aliviar o sofrimento psíquico. E agora? Terapeutas humanos vão dividir o consultório com a IA?

Por Ilana Pinsky
Atualizado em 22 abr 2025, 10h51 - Publicado em 22 abr 2025, 10h50

Ao longo da história, os seres humanos têm sido forçados a engolir sucessivos goles de humildade. Primeiro, descobrimos que a Terra não era o centro do universo, mas apenas um planetinha girando ao redor de uma estrela qualquer, em um canto nada glamouroso da Via Láctea. Depois veio Darwin, com sua teoria da evolução, sugerindo que não fomos moldados à imagem de deuses, mas somos primos mais arrumadinhos dos macacos.

Como se isso já não fosse suficientemente desconcertante, Freud apareceu para dizer que nem nossa própria mente controlamos direito — que existe um inconsciente puxando as cordas dos nossos desejos, medos e decisões sem que a gente sequer perceba. E, para completar a humilhação, os clássicos estudos da psicologia social mostraram que somos altamente sugestionáveis, influenciados com facilidade por grupos e figuras de autoridade, mesmo quando achamos que estamos apenas “seguindo nosso próprio julgamento”.

Agora, parecemos estar diante de mais um golpe existencial. Achávamos que algumas profissões estavam protegidas da automação e da inteligência artificial, especialmente aquelas que envolviam contato humano, escuta empática, sensibilidade emocional — como a psicoterapia.

Afinal, o que poderia ser mais humano do que sentar frente a frente com alguém, compartilhar dores e segredos, e ser ouvido com atenção e cuidado? Pois bem: um estudo publicado na prestigiada revista científica The New England Journal of Medicine acaba de abalar essa convicção.

O ensaio clínico controlado contou com 210 adultos que apresentavam sintomas clínicos de depressão, ansiedade generalizada ou preocupações relevantes com alimentação e imagem corporal. Eles foram distribuídos aleatoriamente em dois grupos: um teve acesso ao Therabot — o chatbot de IA generativa, criado com base em protocolos validados da terapia cognitivo-comportamental — e o outro ficou em lista de espera, sem nenhum tipo de intervenção ao longo do período de acompanhamento.

Desenvolver o Therabot não foi nada simples. Nos primeiros testes, os protótipos concluíam — já na quinta pergunta — que tudo era culpa dos pais! Mais estereotipado, impossível. Para criar algo realmente útil e ético, a equipe decidiu começar do zero: construiu seu próprio conjunto de dados e passou três anos elaborando um acervo de cenários e respostas baseadas em evidências.

Mais de 100 pessoas participaram do processo, com o objetivo claro de não lançar mais um chatbot duvidoso no mar de promessas vazias da tecnologia em saúde mental.

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Durante quatro semanas, os participantes da pesquisa podiam conversar com o chatbot por meio de um aplicativo no celular, respondendo a perguntas automáticas ou iniciando conversas espontaneamente. Depois, seguiram por mais quatro semanas sem contatos automáticos do programa, mas com acesso direto ao chatbot.

O resultado? Os participantes com depressão relataram que seus sintomas caíram pela metade, depois de algumas semanas conversando com o Therabot. Já entre os que tinham ansiedade moderada, muitos passaram a ter apenas sintomas leves. E, em alguns casos, quem começou com ansiedade leve melhorou tanto que já não se encaixava mais nos critérios clínicos para diagnóstico.

Entre aqueles com preocupações alimentares, os sintomas também suavizaram – embora mais modestamente -, superando o grupo de controle. A média de uso do Therabot foi de cerca de 6 horas ao longo do estudo, o que equivale a seis sessões de terapia.

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Psicoterapia no divã high-tech?

Antes que algum terapeuta humano comece a buscar outra profissão ou que algum CEO de startup de saúde mental invista pesado em robôs com voz suave, é bom manter os pés no chão. O estudo teve várias limitações. O número de participantes foi relativamente pequeno e o acompanhamento durou apenas oito semanas (o que impede conclusões sobre efeitos duradouros).

Além disso, o ensaio não foi feito num modelo duplo-cego (necessário para atestar efeitos mais confiáveis em pesquisas clínicas).Ou seja, os participantes sabiam que estavam usando um chatbot e participando de um estudo. Fora que a comparação foi feita com um grupo que não recebeu nenhum tratamento, nenhuma forma tradicional de terapia conduzida por humanos.

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Ainda assim, os resultados são instigantes. Esse tipo de estudo nos obriga a olhar com mais seriedade para o campo da ciência da implementação — uma área que surgiu nas últimas décadas e que estuda como fazer com que tratamentos baseados em evidências funcionem fora do laboratório.

Um dos principais obstáculos na saúde mental é justamente a dificuldade de replicar, na prática cotidiana, o que foi testado com sucesso em ambientes altamente controlados. Na vida real, terapeutas adaptam intervenções, deixam de seguir os protocolos à risca, e isso influencia os resultados.

Já uma IA bem treinada não tem alteração de humor, cansaço, distração ou lapsos de memória. Ela repete exatamente o que funciona, com precisão e consistência. Para a fidelidade do tratamento, isso é ouro.

Vale lembrar que a ideia de intervenções terapêuticas sem o contato humano não é exatamente nova. A biblioterapia, por exemplo — o uso estruturado de livros e leituras como forma de intervenção psicológica — já demonstrou eficácia em casos de depressão leve a moderada. Ela também funciona com ansiedade, transtorno do uso de álcool leve, e até insônia. Ou seja, não é preciso um humano em tempo integral para produzir efeitos positivos na saúde mental.

E isso é uma boa notícia, considerando que o acesso à terapia ainda é limitado em grande parte do mundo, seja por custo, disponibilidade de profissionais ou estigma.

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Ferramentas como o Therabot têm potencial para ampliar o alcance das terapias. Ele também pode funcionar como um complemento: algo para usar entre sessões, ou quando não se tem acesso imediato ao terapeuta humano.

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IA vai substituir a terapia tradicional?

É aqui que o debate esquenta. Num mundo em que boa parte das nossas interações já é mediada por máquinas — falamos com atendentes virtuais para remarcar exames, usamos aplicativos para encontrar um namorado e pedimos conselho ao ChatGPT para melhorar as entregas no trabalho —, a ideia de que até nosso sofrimento emocional pode ser acolhido por uma IA levanta dilemas profundos, incluindo questões sérias de privacidade e confidencialidade (as informações trocadas com IA ficam armazenadas em servidores, sujeitas a usos futuros nem sempre previsíveis).

Conversar com um robô é conveniente e confortável. Ele não se atrasa, não desvia do protocolo, não se ofende. Mas talvez por isso mesmo falte ali algo essencial. A psicoterapia não é só um processo de resolver problemas ou reestruturar pensamentos — é também uma experiência relacional.

É no vínculo, na troca, na construção de uma aliança colaborativa que muitas mudanças acontecem. Parte do impacto terapêutico vem do encontro com alguém real, que escuta, responde, se engaja — alguém que, apesar de formado e treinado, também é atravessado por limites, emoções e escolhas.

Como psicóloga clínica e pesquisadora, confesso que a leitura desse estudo me deixou dividida. Por um lado, me sinto provocada. Questionada, até. Passei a carreira acreditando que meu trabalho exigia algo único, essencialmente humano. Que empatia, escuta ativa, presença e flexibilidade eram mais do que técnicas: eram ingredientes vivos da terapia. Afinal, estamos lidando com sofrimento, vínculo, relacionamentos.

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Mas talvez tenhamos confundido “insubstituível” com “exclusivo”. Por outro lado, é animador ver ferramentas novas sendo validadas pela ciência, especialmente diante da enorme demanda por saúde mental.

Acredito — e até me empolgo — com a possibilidade de chatbots vierem a complementar o trabalho dos psicólogos. E penso no que, por enquanto, ainda escapa à IA: a sensibilidade de adaptar uma intervenção no meio da sessão, a leitura do que não foi verbalizado, a decisão de quando silenciar ou de quando desafiar gentilmente. A capacidade de lidar com o inesperado, de ser falho — e, justamente por isso, confiável.

De ser imperfeito. De ser gente — exatamente neste tempo em que a presença real anda rareando até nas conversas mais íntimas.

*Ilana Pinsky é psicóloga clínica, doutora pela Unifesp. É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto), entre outros livros. Foi consultora da OMS e da OPAS e professora da Universidade Colúmbia. Siga a colunista no Instagram

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