Martin Luther King Jr. e os 60 anos do discurso “I Have a Dream”
Ensaísta Davi Lago nos conduz aos bastidores da declaração do ativista político que se transformou no líder do movimento pelos direitos civis nos EUA
A Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade ocorreu no dia 28 de agosto de 1963 e reuniu cerca de 250 mil pessoas em frente ao Lincoln Memorial. A programação foi simples: discursos intercalados com apresentações musicais de artistas como Mahalia Jackson, Bob Dylan e o trio Peter, Paul & Mary. No momento em que Martin Luther King Jr. subiu na plataforma, as redes de televisão ABC e NBC cortaram a programação e se uniram à CBS na transmissão ao vivo. Além das 250 mil pessoas presentes, King falaria para praticamente a totalidade da audiência nacional de televisão. Ele começou seu discurso com um tom professoral e uma cadência lenta. fazendo uma referência à Proclamação de Emancipação e afirmando: “cem anos depois, o negro ainda não é livre!”. Ele prosseguiu com uma série de críticas à sociedade americana, exigindo o fim do racismo e da discriminação, buscando respaldo em documentos como a Declaração de Independência e a Constituição dos EUA. O discurso é explicitamente construído com uma moldura histórica ampliada. King não delimitou a fala com demandas menores ou imediatas, mas com uma visão que incluiu passado, presente e futuro. King era um mestre da oratória e utilizou dispositivos retóricos como a anáfora, isto é, a repetição de uma sentença que auxilia na ênfase de uma ideia. A mais famosa anáfora utilizada foi “I have a dream” [Eu tenho um sonho]. Ela ocorreu na parte final do discurso, após Mahalia Jackson dizer na plataforma: “Fale para eles sobre o sonho, Martin!”. King improvisou parcialmente a fala. De fato, ele já havia utilizado o motivo do “sonho” em discursos anteriores como em “O negro e o sonho americano” (1961). Meses antes ele utilizou o refrão “eu tenho um sonho” pelo menos em duas ocasiões: na escola Booker T. Washington na Carolina do Norte e na Caminhada pela Liberdade em Detroit. Mas foi em Washington que as palavras entraram para a história da humanidade.
Na conclusão da fala magistral, King citou diversas localidades dos Estados Unidos, descrevendo uma sociedade integrada e amorosa, e terminou citando um antigo hino: “E quando isto acontecer, quando nós permitimos o sino da liberdade soar, quando nós o deixarmos soar em toda moradia e todo vilarejo, em todo estado e em toda cidade, nós poderemos acelerar aquele dia quando todas as crianças de Deus, homens pretos e homens brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos, poderão unir mãos e cantar nas palavras do velho spiritual negro: ‘Livres finalmente, livres finalmente! Graças ao Deus Todo-poderoso, nós somos livres finalmente!’”. Sentada atrás de King, sua esposa Coretta ficou maravilhada com a reação da multidão. Ela afirmou em sua autobiografia: “Quando Martin terminou, houve o silêncio reverente que é a maior homenagem que um orador pode receber. E então, o estrondo tremendo de 250 mil pessoas gritando em êxtase em apoio às suas palavras”.
Em 28 de agosto de 2013, Barack Obama, então presidente dos Estados Unidos da América, discursou na escadaria do Lincoln Memorial em Washington, no mesmo lugar onde, 50 anos antes, o Dr. King proferiu o discurso I Have a Dream. Obama afirmou: “Suas palavras pertencem a todos os tempos, possuindo poder e profecia incomparáveis em nossa época”. Em outra ocasião, Obama descreveu King Jr. como “um pregador negro sem cargo ou título oficial que de alguma forma deu voz aos nossos sonhos mais profundos e aos nossos ideais mais duradouros, um homem que mexeu com a nossa consciência e assim ajudou a tornar a nossa união mais perfeita”. De fato, o riff sermônico “Eu tenho um sonho” continua reverberando em nossos dias. Não apenas a imaginação profética do sonho, mas o modo como King Jr. lutou pelo sonho permanece extremamente pertinente: através da não- violência, da pacificação e da proclamação incansável da reconciliação. Martin Luther King Jr. manifestou determinação, enfatizando sempre os elementos comuns capazes de garantir a possibilidade da convivência entre os diferentes. King ensinou que não basta ser “antirracismo”, é preciso ser “pró-reconciliação”. Os sonhos de King apontaram para uma sociedade fraterna e reconciliada. Ele nunca propôs um monólogo, mas um diálogo social profundo, capaz de passar a limpo as injustiças sociais.
* Davi Lago é coordenador de pesquisa no Laboratório de Política, Comportamento e Mídia (PUC-SP)