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Matheus Leitão

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Blog de notícias exclusivas e opinião nas áreas de política, direitos humanos e meio ambiente. Jornalista desde 2000, Matheus Leitão é vencedor de prêmios como Esso e Vladimir Herzog
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Igreja evangélica progressista – entrevista com o pastor Henrique Vieira

A Rodolfo Capler, o líder da Igreja Batista do Caminho falou sobre a dificuldade da esquerda em dialogar com os evangélicos

Por Rodolfo Capler
Atualizado em 25 ago 2022, 11h45 - Publicado em 21 ago 2022, 09h00

Nas eleições de 2018, 68% dos eleitores evangélicos votaram em Jair Bolsonaro. Para muitos analistas, os evangélicos foram responsáveis pela vitória do capitão. Entre outras razões, Bolsonaro conquistou boa parte do eleitorado evangélico por defender a “pauta de costumes”, se posicionando contra o aborto e contra a chamada “ideologia de gênero”. Apresentando-se como um governante de direita, o atual chefe do Executivo preencheu dessa forma as expectativas conservadoras dos evangélicos, que majoritariamente se identificam à direita do espectro político. 

Apesar da maioria dos evangélicos se identificar como conservadora, o campo evangélico brasileiro se encontra, ideologicamente, em disputa, longe de ser definido como um espaço de homogeneidade. Ao contrário do modo reducionista e generalizado como os evangélicos, comumente, são apresentados pela grande mídia, – como se fossem um grande grupo unívoco – há um significativo contingente de fiéis, assim como de lideranças e de igrejas progressistas. Além de manifestarem uma enorme pluralidade de ideias, doutrinas, ações e interpretações da Bíblia Sagrada, os crentes de esquerda estão – conforme a ativista Camila Mantovani -, “na labuta todos os dias”, produzindo pensamento, fazendo teologia e edificando comunidades que acolhem as minorias e assistem os vulneráveis sociais. Movimentos como a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, liderada pelo pastor Ariovaldo Ramos e a ONG Rio de Paz, presidida pelo teólogo Antônio Carlos Costa, são exemplos das articulações de resistência dos evangélicos progressistas, que cada vez mais ocupam espaços importantes dentro da sociedade.

Com a finalidade de elevar a qualidade do debate sobre esta significativa parcela dos evangélicos, entrevistei um dos seus principais representantes, o pastor batista Henrique Vieira. Aos 35 anos, Vieira é figura reconhecida nacionalmente em razão das suas múltiplas atividades como ator, professor, escritor, poeta, militante e palestrante. Em suas incursões artísticas se destacam a atuação no filme “Marighella”, de Wagner Moura, e a participação no disco do rapper Emicida. Atualmente, Vieira é pastor da Igreja Batista do Caminho na capital Fluminense e é candidato a deputado federal pelo PSOL/RJ. 

Nesta entrevista, Henrique Vieira emitiu sua opinião sobre a instrumentalização da fé para fins eleitorais, manifestou seu compromisso em derrotar o bolsonarismo e revelou o desejo de promover o bem comum por meio da luta política.

Leia a seguir a entrevista completa: 

Rodolfo Capler – Os cristãos devem se envolver com política? 

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Henrique Vieira – Na verdade, sim. Política para além de partidos, mandatos e eleições; mas a partir da ética do evangelho e da fé em Jesus. O cristão deve agir politicamente para promover a paz, a justiça, o bem comum; e para defender a causa do pobre e do oprimido. A partir dos princípios do evangelho – sobretudo do amor -, eu acredito que o cristão deve se comprometer ativamente com a construção de uma sociedade justa, solidária e fraterna. 

Rodolfo Capler – O senhor é pastor da Igreja Batista do Caminho e atualmente é candidato a deputado federal pelo PSOL/RJ. A participação de pastores na política eleitoral não seria algo problemático para a religião, com o risco de tais pastores se envolverem em escândalos ou de usarem sua influência religiosa para erigirem projetos pessoais de poder? Como o senhor enxerga esta questão?  

Henrique Vieira – Este risco existe para quaisquer pessoas. A questão não é ser ou não religioso, ser ou não pastor. A questão é a ética; o que motiva a participação de alguém na política institucional. Este é o ponto fundamental, na minha opinião. Eu sou pastor e sou politicamente engajado desde a minha adolescência. A Igreja Batista do Caminho, comunidade que pastoreio, tem uma construção bíblico-teológica que é coletiva, ou seja, não é centrada na minha pessoa. Nós temos um colegiado eleito em assembleia, de forma que as decisões da igreja são tomadas em conjunto. Entendemos que a figura pastoral é parte da comunidade e não deve se sobrepor a ela. Além disso, temos um revezamento no púlpito, sem interrupções, justamente para que a igreja não tenha apenas uma pessoa lhe provendo ensino. Assim, toda a construção teológica e eclesiológica da igreja não parte apenas de mim, mas de toda a comunidade; é um projeto coletivo. Na Igreja Batista do Caminho, a gente zela muito pela horizontalidade, pela liberdade de consciência, de pensamento e de fé de cada irmão e de cada irmã. As decisões da igreja não são expedições da minha vontade. Em relação a minha atividade política, ela é respeitada por todos. As pessoas entendem que a luta política é uma forma que eu tenho de contribuir para o bem comum. No caso da minha candidatura, fui licenciado do púlpito, justamente para confirmar esse respeito à autonomia da igreja e à liberdade de pensamento e de voto de cada membro da comunidade. Esse é um cuidado que nós temos, para fazermos diferente de muitos pastores que usam o púlpito como palanque eleitoral. Conforme eu já falei em inúmeros lugares, para mim a política é um espaço para servir o povo, buscar o bem comum, a justiça social e para combater as opressões e tudo aquilo que violenta a natureza. A política não é espaço de projeto pessoal de poder, de privilégios e, sequer, da defesa de interesses da igreja. Eu não estou na política para defender as demandas dos evangélicos. Eu defendo o Estado laico, a diversidade religiosa e também a não crença religiosa. Eu não pretendo estar em Brasília para fazer parte de uma Bancada Evangélica. Não é esse tipo de coisa que habita meu coração… Mais uma vez reafirmo: a política é um espaço para servir a coletividade, a diversidade, a democracia e para promover o bem comum. A política é o espaço para defender o direito dos pobres, dos trabalhadores, das mulheres, do meu povo (o povo negro), dos LGBTs, dos sem terra e dos sem teto. 

Rodolfo Capler – Temos visto muitas igrejas evangélicas cedendo espaço para fazer campanha eleitoral para Bolsonaro, o que fere o princípio da separação entre Igreja e Estado. Conceder espaço a políticos de esquerda nos ambientes de culto, não seria igualmente um erro?

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Henrique Vieira – A nossa igreja tem como princípio não ceder esse espaço para nenhum político, seja ele representante de qualquer espectro ideológico. Conforme lhe disse há pouco, estou me licenciando do púlpito para zelar pela consciência de fé e liberdade de voto de cada fiel da minha comunidade. Mas, é preciso desenvolver esse argumento, que é o seguinte: a igreja precisa ter autonomia diante do Estado e diante dos partidos políticos. A igreja não pode ser um braço do Estado ou de um partido, muito menos deve servir como um palanque eleitoral. Ao mesmo tempo, a igreja não pode ser neutra diante da injustiça e da opressão. Ela não pode ficar em silêncio diante do racismo, do machismo, do extermínio da juventude negra nas periferias, da concentração de renda e da desigualdade social. A igreja não pode ser omissa diante do fato de que milhões de brasileiros estão passando fome ou sede. Ou seja, uma coisa é ser autônoma em relação ao Estado e aos partidos políticos, outra coisa é ser uma igreja apática e alienada no que diz respeito à violação e ao sofrimento do povo. Eu defendo uma igreja que respeite o Estado laico, que não tem projeto de poder político e que não faz do púlpito palanque eleitoral. Eu defendo igrejas engajadas politicamente, comprometidas com a justiça social e com a denúncia das injustiças. Agora, chegamos ao desfecho da minha resposta; eu lamento muito que a igreja tenha ficado em silêncio diante da ditadura civil-militar que tivemos em nosso país. Lamento profundamente a igreja que aplaude Bolsonaro ou que fica calada diante dele. Para encerrar meu argumento, penso que, em hipótese alguma, a igreja deve apoiar candidatos políticos. 

Rodolfo Capler – O pastor batista Martin Luther King Jr., certa vez afirmou: “A igreja não é senhora ou serva do Estado, mas, antes, sua consciência crítica”. Como a igreja evangélica brasileira pode exercer essa vocação de ser consciência crítica do Estado?

Rodolfo Capler – Defendendo o direito de quem sofre. Ser a consciência crítica é denunciar que a cada 23 minutos um jovem negro é executado. É denunciar que neste país há uma cultura do estupro e muitos feminicídios sendo praticados todos os dias. Ser a consciência crítica do Estado é ouvir o grito dos povos indígenas, que estão lutando para viver com dignidade. É denunciar os poderosos empresários que dominam e que oprimem a classe trabalhadora. Ser a consciência crítica é se levantar contra o absurdo da fome que assola milhões de famílias. É denunciar a atual política do governo federal que aposta em armas e em munições; e que alimenta a violência, as milícias e as facções criminosas. Ser consciência crítica do Estado é, portanto, chamar a atenção para todas essas realidades que estão maltratando o nosso povo. Essa é a reserva de consciência crítica que Luther King Jr. falava e que nós precisamos atualizar para o Brasil.

Rodolfo Capler – O senhor é uma das vozes evangélicas do campo progressista que mais faz autocrítica. Inclusive, manifestou-se inúmeras vezes denunciando a dificuldade da esquerda em dialogar com os evangélicos. Essa dificuldade ainda existe? 

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Henrique Vieira – Eu acredito que ainda há esta dificuldade. Por diversas razões.  Há uma tradição de esquerda europeia, que durante muito tempo rejeitou a experiência religiosa. Também é importante falar que existe uma esquerda latino-americana e, especificamente, brasileira, que já superou isso, pois entendeu que a experiência religiosa pode contribuir para a transformação da sociedade. Exemplos disso são a teologia da libertação, as comunidades eclesiais de base, a teologia negra e a teologia feminista. Ou seja, a esquerda vem aprendendo com o tempo. Por outro lado, precisamos confessar que existem lideranças evangélicas no Brasil, detentoras de muito poder político, econômico e midiático. Essas lideranças têm vozes intolerantes, violentas, contrárias à diversidade e dominadoras dos corpos. Assim dizendo, as grandes referências que aparecem nos principais meios de comunicação, de fato, são referências muito tristes e que impõe pesos sobre as consciências de milhões de pessoas. Com tudo isso que estou dizendo, estou por um lado, reconhecendo os limites da esquerda e, ao mesmo tempo, identificando o seu avanço. Entretanto, é preciso também entender que o cristianismo hegemônico fez parte de um projeto colonizador. Eu, como um discípulo de Jesus, não posso deixar de reconhecer que o cristianismo hegemônico é patriarcal, racista, cis-hetero-normativo e fundamentalista. Isso provoca muito medo, muita violência e muita opressão. Esta é uma questão muito complexa. Em contrapartida, eu faço parte de uma tradição cristã popular, vocacionada ao diálogo interreligioso, que defende a democracia, os direitos humanos e a luta por justiça social. Comungo de uma tradição que entende que andar com Jesus é defender a causa do pobre e do oprimido. Eu sou apenas mais uma expressão dessa tradição teológica e política. Dom Hélder Câmara, Frei Betto, irmã Dorothy, Ronilso Pacheco, Odja Barros e muitos outros e outras, compõe esse campo cristão popular do qual faço parte. A esquerda precisa se lançar cada vez mais ao diálogo, porém, ela tem avançado nisso, diariamente. Penso que é fundamental para a esquerda dialogar com as pessoas pobres e trabalhadoras, que representam a maioria dos evangélicos no Brasil. É necessário identificar o fundamentalismo e combatê-lo, entretanto, não podemos deixar de olhar para o povo. O diálogo tem que ocorrer a partir disso e não apenas pensando no voto. 

Rodolfo Capler – Em suas falas, o senhor sempre apresenta Jesus como uma personagem politicamente engajada. Visto que segundo a fé cristã, Jesus é o Filho de Deus e que o seu reino não é “deste mundo”, politizar Jesus não seria uma forma de esvaziá-lo?

Henrique Vieira – Muito pelo contrário. Despolitizá-lo é uma forma de esvaziá-lo. A expressão “Reino de Deus”, que foi a expressão que Jesus mais utilizou, é uma afirmação com consequências políticas. A separação que temos hoje, entre fé e política, simplesmente não existia na época de Jesus de Nazaré. A fé que Jesus tinha, necessariamente, era engajada politicamente. No tempo de Jesus, “rei” representava o imperador romano. Portanto, quando Jesus falava em “Reino de Deus”, ele estava desautorizando o domínio romano sobre o seu povo. Inclusive, ele dá as características desse reino. São todas características históricas, relacionais e políticas. No “Reino de Deus”, por exemplo, tem partilha. Partilha do pão, do peixe e da riqueza. Não faz sentido algum, pensarmos em partilha numa dimensão pós-morte, pois, lá no céu não haverá necessidade de lutarmos por essas coisas. Dessa forma, a partilha como elemento central do “Reino de Deus” é um artifício político e um ensinamento para nós. No “Reino de Deus” há a quebra das hierarquias. Ou seja, os maiores se tornam menores e os menores se tornam maiores, de modo que, neste reino não há apenas uma divisão de bens materiais, mas também de poder, para que todas as pessoas possam ser igualmente valorizadas. No “Reino de Deus”, não é “olho por olho e dente por dente”. Não se responde o mal com o mal. No lugar da vingança, destacam-se o perdão, a mediação de conflitos e a promoção da paz, por meio da justiça. Também não faz sentido falar em perdão numa perspectiva etérea. Precisamos perdoar aqui… Repare que as características do projeto inaugurado e encarnado por Jesus, são características históricas de uma espiritualidade voltada para o tempo presente. O “Reino de Deus” para Jesus não estava acima; ao contrário, estava à frente. Jesus não fundou uma religião, porém inaugurou um movimento, uma ética de amor, de partilha, de diversidade e de igualdade. Tanto é que Jesus foi morto politicamente. Como diz Frei Betto: “Todo cristão é discípulo de um preso político”. Jesus foi injustamente julgado, preso, torturado e executado pelo Estado. Ele ainda foi vítima de um discurso de ódio, porque enquanto estava sendo surrado, havia pessoas zombando dele e se divertindo com a tortura imposta ao seu corpo. Assim, não podemos negar que Jesus foi vítima do Estado e, igualmente, foi vítima de um discurso de ódio. Este é Deus para nós, a saber, o Jesus de Nazaré, que assumiu a experiência dos oprimidos e denunciou a exploração sobre o seu povo. No final ele ressuscitou e vivo está entre nós!

Rodolfo Capler – Aos entrevistados anteriores, perguntei se era possível um cristão ser de esquerda. Gostaria que o senhor me respondesse: é possível ser cristão e ser de direita?

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Henrique Vieira – O evangelho de Jesus, certamente, não cabe numa categoria política. Eu jamais reduzirei o evangelho a um espectro político. Porém, o evangelho aponta valores. A ética do evangelho é a ética da defesa da causa do pobre e do oprimido. Não dá para ser discípulo de Jesus e enriquecer à custa do empobrecimento do povo. Não dá para ser discípulo de Jesus e ser indiferente ao sofrimento humano. Não dá para ser seguidor de Jesus e achar razoável que um indivíduo como o Elon Musk tenha oferecido 44 bilhões de dólares para comprar uma rede social, enquanto parte significativa da humanidade vive na pobreza e na miséria. Eu não reduzirei o evangelho à direita ou à esquerda, mas eu afirmo que o evangelho tem uma palavra dura e severa àquelas pessoas que enriquecem empobrecendo o povo. É impossível ser discípulo de Jesus e ficar em silêncio diante do racismo, do machismo e da fome. Eu não reduzirei o evangelho a um espectro político-ideológico, mas acredito que o evangelho vai sempre se colocar ao lado de quem está amaldiçoado socialmente. Para além de direita-esquerda a luta pelos direitos dos oprimidos define para mim o que significa ser coerente com Jesus. Na verdade, não basta crer em Jesus se a gente não crê como Jesus.  Não basta confessar Jesus com os lábios se não o trazermos para o coração e para as atitudes. Não se trata de uma confissão, se trata de uma causa.

Rodolfo Capler – Por que Karl Marx é persona non grata entre a maioria dos cristãos-evangélicos?

Henrique Vieira – Em parte, porque muita propaganda poderosa foi feita distorcendo a perspectiva marxista. Não dá para achar que essa rejeição seja fruto de uma boa leitura e de um bom diálogo com o pensamento de Marx. Ou seja, há uma produção histórica que distorce o pensamento marxista. Este é um ponto que precisa ser considerado. Outro ponto importante é que Marx, de fato (pelo menos na minha leitura), olhou para a experiência religiosa com muitas ressalvas. Por exemplo, eu não leio Marx de forma fundamentalista. Marx pode ser questionado pelos marxistas, inclusive. Agora, o que é importante na obra de Marx? Ele desenvolveu pensamento para superar a desigualdade e a exploração de um ser humano sobre outro ser humano. Isso para mim é muito valioso. É mais importante, até, do que o que ele tinha a dizer sobre Deus ou sobre não-Deus. É necessário considerar que há muita gente que fala e escreve muito bem sobre Deus, mas tem uma visão de mundo que é violenta, que produz injustiça e que massacra o povo. Se eu pudesse conversar com Marx hoje,  diria a ele: “Eu discordo de muitos aspectos do seu pensamento em ralação à experiência religiosa, mas te agradeço muito por sua sensibilidade humana e social e por interpretar toda a lógica maldosa e perversa que o capitalismo produz. Te agradeço por ter nos ajudado a pensar, verdadeiramente, a partilha e a superação da desigualdade”. Algo interessante é que o trecho no qual Marx fala da religião como ópio do povo, é subsequente  a sua afirmação de que “a religião é o coração de um mundo sem coração”. Se voltarmos duas linhas, perceberemos que o pensamento de Marx é mais profundo do que normalmente se imagina. Enfim, penso que a relação dos cristãos com o marxismo envolve toda essa complexidade. Todavia, sem fugir de polêmica, eu acredito que é possível ser cristão lendo Marx e discernindo o que pode ser válido e o que pode não ser válido para a experiência religiosa. 

Rodolfo Capler – Em sua participação no filme “Marighella”, a sua personagem (um frei dominicano que luta contra a ditadura militar), faz a afirmação de que Jesus era negro. À época, essa fala gerou mal-estar em muita gente, inclusive em muitos evangélicos. Por que um Jesus negro incomoda tanto?

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Henrique Vieira – Por causa do racismo – simples e direto assim. A imagem de um Jesus branco não é questionada. Ninguém pede provas acadêmicas, arqueológicas, geográficas e históricas para sustentar a imagem de um Jesus branco. Isso porque o racismo constrói a naturalidade e a normalidade daquilo que é branco. Quando você apresenta um Jesus negro, você rompe com a estética, com a psique, com a religiosidade e com a pretensa normalidade branca. Um Jesus negro incomoda por causa do racismo. Eu não consigo formular outra resposta para esta pergunta. Agora, do ponto de vista geográfico e historiográfico, sabemos que Jesus não era branco. O James Cone, ícone da teologia negra, tem uma frase linda, que resume toda esta questão. Ele afirma o seguinte: “Se Jesus foi um judeu camponês da palestina do século I, então ele é negro”. Isso pela seguinte razão: se na Palestina do primeiro século, Deus assumiu a forma corpórea de um ser humano oprimido, ele continua assumindo esta forma nos dias de hoje. Ele é negro, pois assume a forma do oprimido. Isso me permite dizer que Jesus vai sempre revelar o seu rosto por meio do corpo do oprimido, de tal modo, que no Brasil, Jesus é negro e também é indígena. Essa afirmação não foi tirada de um panfleto marxista, mas do próprio evangelho que me apresenta o Jesus de Nazaré e não o Jesus de Roma, ou de Jerusalém. Jesus viveu em Nazaré, um pequeno vilarejo, agropastoril e floral, oprimido pelo poder de Roma. Neste lugar periférico e desvalorizado, o Deus encarnado passou boa parte dos seus dias. 

Rodolfo Capler – Você é o idealizador da campanha “Derrotar Bolsonaro é um ato de amor”. Por que vencê-lo seria um ato de amor?

Henrique Vieira – Por que a política dele é um ato de ódio. Como um cara consegue imitar de forma zombeteira as pessoas que morreram com falta de oxigênio na pandemia? Como um cara consegue homenagear e ter como heróis, torturadores? Além disso, Bolsonaro tem uma política cruel, maldosa e perversa. Ele está fora de qualquer razoabilidade democrática. Se ele tem como projeto uma política cujo objetivo é a morte, derrotá-lo é um ato de amor e uma verdadeira defesa da vida, da dignidade humana, da paz e do diálogo. Sabe qual é a imagem do Bolsonarismo para mim? É a de um cara que vai discutir comigo com uma arma na cintura. Você acha que essa é uma conversa razoável? Isso é o bolsonarismo… 

Rodolfo Capler – Qual mensagem o senhor gostaria de deixar para o eleitor e para a eleitora evangélicos?

Henrique Vieira – Usem a ética do amor como parâmetro e referência para a escolha dos seus candidatos políticos. Com liberdade, sem intimidação ou opressão de quaisquer forças políticas, façam a escolha de vocês. Vistam a ética do amor, pois o amor não glorifica o ódio, não se alegra com a injustiça e não é indiferente ao sofrimento humano. Votem com muito amor.  

* Rodolfo Capler é teólogo, escritor e pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP

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