Abertura de novas escolas médicas não pode atropelar política pública
Segundo médico da Associação Nacional das Universidades Particulares, país precisa discutir avanços da política pública vigente para atender o interior
Se o problema de acesso aos serviços de saúde de qualidade no Brasil pudesse ser resolvido meramente pela quantidade de médicos, a solução estaria muito mais próxima. De acordo com a Demografia Médica do Conselho Federal de Medicina (CFM), o país chegou à relação de 2,8 médicos a cada mil habitantes. Se comparado ao ranking da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil está no mesmo patamar do Canadá, deixando para atrás EUA, México, Japão e Coréia, ficando em 35º na lista.
Em números absolutos, o Brasil tem 575.930 médicos ativos, uma das maiores estatísticas do mundo. Quanto aos cursos de formação de Medicina, apenas a Índia possui mais escolas médicas que o Brasil, com 606 cursos, enquanto os brasileiros acolhem 400, sendo que, destes, 190 foram autorizados nos últimos dez anos – um número equivalente ao de escolas médicas abertas ao longo de dois séculos no país.
Na visão de especialistas em educação médica, após a divulgação do censo do CFM, as discussões sobre o resultado do levantamento deveriam ser acompanhadas de um debate, de equivalente importância para o setor, e relacionado à política pública para interiorização do acesso à assistência à saúde no país. “Por mais que a carência de médicos ainda exista em algumas regiões do país, a regulação para abertura de cursos e vagas precisa ser examinada à luz de critérios que possam contribuir para a democratização do acesso à saúde, levando em consideração estratégias que garantam a qualidade da formação e impulsionem a interiorização e fixação desses profissionais para além das grandes metrópoles, centros urbanos e capitais do país”, destaca o médico Silvio Pessanha Neto, coordenador da Rede de Educação Médica da Associação Nacional de Universidades Particulares (Anup).
Em entrevista, Pessanha Neto afirma que o acelerado crescimento de profissionais não tem relação direta com a democratização ou o aprimoramento da qualidade do atendimento médico oferecido à população, e defende a regulação com critérios alinhados à aos avanços dos estudos sobre educação médica e às necessidades do Sistema Único de Saúde (SUS) para aprimorar a distribuição de profissionais pelo país.
Na Demografia Médica do CFM chama atenção a diferença de disponibilidade de médicos entre as regiões do nosso país. Há um entendimento comum de que as cidades no interior são as mais prejudicadas por esse desequilíbrio. Há alguma possibilidade de reversão dessa lógica que permita uma melhor distribuição ao acesso à saúde no Brasil?
Silvio Pessanha Neto – A geografia continental é uma das causas de muitos desafios enfrentados no Brasil, nos mais diversos temas. Aliás, em outras nações também. No caso do acesso à saúde, sem dúvida, os números observados reproduzem um quadro sistemático causado pela ausência, por anos, de uma política pública capaz de mapear tais carências estruturais, ao mesmo tempo em que produzisse soluções sustentáveis, entregando à população brasileira o acesso amplo ao Sistema Único de Saúde, a partir de qualquer lugar. Embora ofuscadas por debates muitas vezes improdutivos, é necessário estudar alternativas que não se limitem a um aumento linear na formação de médicos no país. Há uma possível resposta que envolve, necessariamente, a preparação e formação profissional médica e que promova a fixação desses profissionais para além das grandes cidades, levando-os ao interior do país. Estamos falando exatamente de modelos como os editais do Mais Médicos, regulação indutora da implantação de escolas médicas em áreas designadas em conformidade com a uma política pública estruturada, desde 2013, para ocupar os espaços vulneráveis e levar assistência a quem precisa. Iniciativas como esta promovem a qualificação dos equipamentos do SUS, oferecendo melhores condições de trabalho para o médico como acesso a equipamentos, exames e procedimentos, estimulando sua permanência nestas regiões.
Pode nos dar exemplos dessas diferenças e falar sobre o papel das políticas públicas pela regulamentação do Programa Mais Médicos, para o avanço na distribuição dos profissionais pelo país?
Silvio Pessanha Neto – Basta comparar a densidade populacional com o número de médicos disponíveis a cada mil habitantes nas regiões do país. Para se ter ideia da discrepância, sem detalhar região por região, há capitais ou grandes metrópoles do país onde observa-se uma relação de médicos por mil habitantes próxima a 7, em contraste com a média de 1,9, podendo chegar abaixo de 1,0, observada em cidades do interior, em sua maioria, no Norte ou Nordeste. Segundo o levantamento do CFM, Vitória, capital do Espírito Santo, é recordista com 18 médicos por mil habitantes. Sobre a regulação, temos acompanhado estudos que vêm se intensificando para entendermos de forma prática esses dados. Uma turma de medicina, considerando a graduação e tempo de especialização, leva mais de 10 anos para se formar. E este é o mesmo tempo que temos desde a implementação do Programa Mais Médicos.
Então ainda não se tem como avaliar uma resposta da política com esse prazo…
Silvio Pessanha Neto – Na verdade, apesar de estar no início, é possível perceber um caminho percorrido por várias instituições de ensino em direção à interiorização dos cursos de graduação em medicina, sob os efeitos dos editais de chamamento público previstos na regulação vigente. Os editais trazem requisitos para o planejamento e para projeções dos resultados que se espera atingir. Dados oficiais do Ministério da Educação totalizam 400 escolas médicas em atividade, oferecendo um total de 42 mil vagas anuais autorizadas para cursos de medicina. Mas, destes números, o que torna mais significativo e importante para a demonstração da ascensão da política pública para interiorização de médicos, especialmente nos últimos dez anos, é que, desde 2021, cerca de 62,4% dessas vagas estão disponibilizadas em municípios distintos das capitais. Estudos de colegas da Universidade de São Paulo estão indicando que mais de 70% dos egressos que se graduam em municípios do interior passam a atuar fora das capitais e regiões metropolitanas, fortalecendo e qualificando as regiões de saúde.
A regulação para abertura de escolas de medicina, no caso, difere de outras estratégias de estímulo à desconcentração e redistribuição desses médicos pelo país?
Silvio Pessanha Neto – Sim. A regulação da Lei do Mais Médicos se diferencia neste sentido, pois traz maior estímulo para a permanência dos profissionais considerando, como base, os critérios para implementação de escolas médicas acompanhando as realidades locorregionais. Os editais públicos são preparados pelos ministérios da Educação e da Saúde em consonância com as necessidades da região, selecionando entre os projetos apresentados por instituições de ensino superior que se mostrem capazes de contribuir com as transformações propostas no que tange aos programas de residência médica, às averbações de contrapartidas financeiras para o desenvolvimento da rede SUS da localidade, à oferta de bolsas integrais para estudantes locais de baixa renda, entre outros compromissos, estabelecendo um ambiente e contexto benéficos para a fixação, nessas regiões, seja de novos profissionais ou de professores que são atraídos ecapacitados para fazer parte dessa resposta às comunidades mais vulneráveis. Ou seja, as exigências da regulação foram criadas para garantir qualidade na educação, estímulo à permanência e desenvolvimento de programas de fixação, como a residência médica em áreas fundamentais para assegurar a oferta de especialidades médicas indispensáveis para uma assistência adequada à população dessas localidades
Há alguma avaliação, ainda que preliminar, de resultados dessa regulação?
Silvio Pessanha Neto – Os primeiros cursos autorizados no âmbito dos editais do Mais Médicos entraram em operação no segundo semestre de 2017. Sendo assim, as primeiras turmas começaram a se formar no meio do ano passado, mas a maioria só passou a ter egresso no final de 2023 e em 2024. Portanto, ainda é cedo para avaliar a política pública com base nos dados da demografia. É possível observar um aumento combinado entre o número de profissionais no interior e a oferta de vagas para estudantes a partir dos cursos implantados por meio de editais da LMM. A regulamentação tem levado mais escolas de medicina a cidades menores e a uma distribuição mais equilibrada em diferentes regiões. Hoje, mais de 60% das vagas estão fora das capitais. O estudo da USP demonstra que, historicamente, essa tendência de levar a educação médica para áreas mais afastadas contrasta com a situação que tínhamos no início do século, nos anos 2000, por exemplo, quando menos da metade das vagas estavam fora das capitais. Isso mostra que essa mudança é relativamente nova, mas está crescendo rapidamente. Precisaremos estudar o destino destes recém-formados, mas, empiricamente, temos observado que muitos deles tem ocupado as vagas de residência que foram criadas nos últimos anos em obediência ao que exigia o próprio edital que concedeu o direito de implantar o curso de graduação em medicina nestas regiões.
O que esperar de positivo dos novos editais e da regulamentação dos cursos de Medicina?
Silvio Pessanha Neto – Estamos analisando as políticas adotadas para interiorização. É inquestionável que, a partir de 2013, em comparação às tentativas anteriores, sobretudo em escala, houve um maior número de cursos autorizados no interior do que em ciclos anteriores. Ou seja: passou-se a combinar a oferta de mais médicos com medidas de distribuição. E sobre a fixação desses profissionais, de fato, ocorreu um processo recente de maior interiorização do ensino médico no Brasil, com tendência de pulverização da abertura de escolas e vagas de medicina em municípios de menor porte e desconcentração em diferentes regiões. Este movimento, respeitando as regras dos editais dos Mais Médicos, considerando a exigência de se realizar investimentos nas unidades de saúde do SUS, vem promovendo a qualificação dos serviços com a reforma de estruturas físicas, dando maior dignidade ao médico, aos demais profissionais de saúde e aos pacientes, a compra de equipamentos indispensáveis para a prática de uma medicina de qualidade, a formação e treinamento dos colaboradores da Rede e o pagamento de bolsas de Residência Médica. Porém, apesar dessa abertura de escolas médicas do interior dos estados, ainda aguardarmos os resultados de estudos dedicados a nos mostrar os efeitos dessa expansão, que prioriza, sem dúvida, os desassistidos e a qualificação de quem irá atender essas comunidades. É importante observar que a política pública prevista pela Lei do Mais Médicos vem sendo aprimorada. O novo edital, por exemplo, avança com novos critérios que permitem identificar as regiões onde ainda se observa demanda social para a oferta do curso, utilizando o limite de 2,5 médicos para cada mil habitantes. Portanto, prioriza a promoção à desconcentração médica, na pontuação das propostas das instituições de ensino que pretendem implantar novos cursos, identificando locais que tenham uma rede de saúde nem tão precária que não se possa qualificar para a adequada formação médica, nem tão desenvolvida que a presença do curso não promova melhorias no atendimento à população. Desta forma, busca-se zelar pela medicina de qualidade e pelos princípios do Estado Democrático de Direito que prevê assistência médica a todos os brasileiros.