“A minha religião é a literatura” – entrevista com Itamar Vieira Junior
A Rodolfo Capler, o autor do aclamado “Torto Arado” revelou suas influências literárias, comentou a conjuntura política do país e opinou sobre evangélicos
No final de 2020 o livro “Torto Arado” foi publicado no Brasil pela editora Todavia. Vencedor do Prêmio LeYa de Portugal, a obra rapidamente se tornou um sucesso estrondoso em terras brasileiras, alcançando a marca de mais de 400 mil exemplares vendidos e recebendo os dois principais prêmios literários do país; o Jabuti e o Oceanos.
Seu autor, Itamar Vieira Junior, pelo sucesso da obra, ganhou status de celebridade num país com baixíssimos índices de alfabetização e de leitura. “Embora eu seja o autor de “Torto Arado” o sucesso é do livro. Foi o livro que cativou as pessoas”, explica. Nascido em Salvador no ano de 1979, Vieira Junior é geógrafo, formado pela Universidade Federal da Bahia, mestre e doutor em Estudos Étnicos e Africanos pela mesma instituição. Analista agrário do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) há mais de 15 anos, o escritor revela a importância de sua carreira paralela à literatura. “A minha atuação como servidor público me permitiu viajar muito pelo Brasil. Assim, eu acabei formando uma visão mais ampla do nosso país”, comentou.
Itamar Vieira Junior é 19º entrevistado numa série de entrevistas iniciada aqui na coluna em junho deste ano. Após conversar com pastores, intelectuais e políticos importantes para o debate público brasileiro, me volto ao escritor baiano com perguntas importantes sobre literatura, política e religião. Além de comentar a atual conjuntura política do país, arriscando algumas análises sobre o novo governo Lula, o autor de “Torto Arado” falou sobre sua relação com o jarê (religião de matriz africana praticada na Chapada da Diamantina) e expressou sua opinião sobre os evangélicos.
Leia a seguir a entrevista completa:
Rodolfo Capler – Você mantém algum tipo de prática religiosa?
Itamar Viera Junior – Eu venho de uma família católica; quando criança fui crismado e fiz primeira comunhão. Naquele tempo a intolerância era um pouco diferente do que é hoje. O ambiente da minha casa era muito sincrético; as crenças de matriz africana estavam muito presentes. Nós participávamos das festividades e comíamos as comidas servidas nos terreiros de candomblé. Havia preconceito, mas era uma coisa orgânica que fazia parte da vida de todo mundo e não incomodava quase ninguém. É bem diferente da intolerância dos nossos dias, a qual é muito mais radical. Hoje me considero agnóstico, pois, acredito ser a posição mais coerente. Para ser ateu é necessária uma certeza que eu não tenho (risos).
Rodolfo Capler – Você doutorou-se em estudos étnicos e africanos, fazendo pesquisa de campo na comunidade quilombola Iúna, na Chapada da Diamantina (BA). De que forma essa experiência influenciou a sua relação com as religiões de matriz africana?
Itamar Vieira Junior – Quando criança, eu morei em vários bairros de Salvador-BA. A minha família mudava com muita frequência. Por isso, sempre vivi em bairros populares onde havia a presença das religiões de matriz africana. Era muito comum, por exemplo, eu participar de festividades ou observar as coisas que aconteciam nos terreiros. Até o ano de 2019 eu morava numa residência que ficava atrás de um terreiro de candomblé. Com frequência eu escutava as músicas e via os rituais praticados naquele local de culto. Aquilo passou a fazer parte da minha vida e do meu cotidiano. Quando eu cheguei à Chapada da Diamantina, há mais de dez anos, para trabalhar como servidor público, tive contato com o jarê. Como eu fazia parte da universidade e trabalhava como servidor, eu já tinha um grande interesse pelas manifestações religiosas populares. O contato com essas expressões de espiritualidade foi a forma que eu encontrei de fazer a minha leitura da sociedade. Após o meu contato com o jarê comecei a estudá-lo com mais profundidade. A pesquisa que conduzi com a comunidade quilombola Iúna não é o ponto central da minha tese de doutorado, mas teve uma grande contribuição para que eu pudesse fazer a leitura social duma comunidade com ascendência negra, ligada à diáspora africana. A partir disso, eu comecei a frequentar os encontros religiosos, a gravar entrevistas e a ler sobre eles. Sem dúvidas, esse contato com o jarê foi uma experiência muito importante na minha trajetória como escritor.
Rodolfo Capler – Sendo um conhecedor e narrador do Brasil profundo, como você vê a relação do segmento evangélico – formado majoritariamente por pretos, pobres, periféricos e pentecostais – com os praticantes das regiões de matriz africana?
Itamar Vieira Junior – Infelizmente, é uma relação que não é muito saudável e respeitosa. Eu falo com propriedade, pois, a minha família paterna é toda evangélica. Já na minha infância eu percebia que aquelas pessoas eram simples, trabalhadoras e bem-intencionadas, mas cultivavam um preconceito em relação às religiões de matriz africana. Compreendo que esse preconceito manifestado pelos fiéis evangélicos era apreendido com os líderes religiosos que eles tinham. Eu me recordo desse preconceito religioso desde muito cedo. Os evangélicos desrespeitavam os umbandistas e candomblecistas, associando-os ao diabo, mas não chegavam ultrapassar um certo limite, como vemos acontecer com algumas comunidades no Rio de Janeiro, que agridem fisicamente os praticantes dessas religiões. Olhando para o cenário atual, penso que devemos avançar nesta questão. O Brasil tem uma parcela significativa de sua população que se identifica como evangélica. Por essa razão, é tarefa de qualquer cidadão preocupado com o futuro do país conhecer os evangélicos. Não podemos agir de forma preconceituosa contra essas pessoas, arrolando-as como se fossem um problema a ser resolvido. Penso que o grande problema diz respeito às lideranças evangélicas. A maneira como elas se apropriaram da política partidária e como atacam o Estado laico são questões sérias e problemáticas que devem ser encaradas por todos nós. Diante disso, eu acho que devemos estabelecer um limite de direitos e deveres. O respeito deve prevalecer sempre.
Rodolfo Capler – Um dos aspectos mais fortes de “Torto Arado” é a relação das irmãs protagonistas Bibiana e Belonísia com a terra. De que modo o seu trabalho como servidor público no Incra afetou a sua narrativa?
Rodolfo Capler – Quando eu me formei na universidade, prestei concurso e, por necessidade, fui trabalhar no Incra. A minha atuação como servidor público me permitiu viajar muito pelo Brasil. Assim, eu acabei formando uma visão mais ampla do nosso país. Percebi que o campo, com suas relações de trabalho e evidente desigualdade social, ainda é uma realidade brasileira. Esse tipo de experiência me marcou profundamente. Associado a isso, o meu acesso à literatura do ciclo do Nordeste (da primeira metade de século XX) contribuiu para que o campo e suas relações viessem à tona em “Torto Arado”. Autores como Jorge Amado, Raquel de Queiroz, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e João Cabral de Melo Neto também me afetaram profundamente. Eu achava que as questões do campo estavam no passado, mas a minha experiência in loco me mostrou que aquelas histórias estavam muito vivas ainda. Foi assim que eu retomei o projeto de “Torto Arado”, que estava parado há muito tempo. O êxito da obra se deve a todo esse conhecimento e experiência que angariei nos últimos anos. Sem esse aprendizado eu jamais saberia que a relação que os camponeses têm com a terra vai além da consciência de um bem econômico. Ou seja, é muito mais que isso; é uma relação de vida. É algo que envolve dimensões subjetivas e afetivas.
Rodolfo Capler – A escolha de duas personagens femininas como protagonistas de “Torto Arado” é uma denúncia ao machismo estrutural que domina as relações sociais no Brasil?
Rodolfo Capler – A minha escolha por duas personagens mulheres foi bem pragmática. Durante todos esses anos trabalhando com os camponeses eu percebi que em quase todas as comunidades e projetos de assentamentos as mulheres eram protagonistas. Elas estavam sempre liderando e resolvendo as demandas coletivas de suas comunidades. Ou seja, mesmo sendo atravessadas pelo machismo estrutural e pelo patriarcado, as mulheres estavam à frente de todas as questões. Eu achava aquilo muito paradoxal e intrigante. Me lembro que naquele período um pensamento de Milton Santos fixou-se em minha mente. Santos dizia que “as transformações vêm de baixo, das classes populares”. Eu refletia sobre como as ações das mulheres pobres refletiriam futuramente em nosso país. Acho que foi por isso que eu escolhi as personagens Bibiana e Belonísia.
Rodolfo Capler – Você é autor de “Torto Arado” um dos livros mais lidos e premiados do Brasil. Como lida com o reconhecimento do público?
Itamar Vieira Junior – Embora eu seja o autor de “Torto Arado” o sucesso é do livro. Foi o livro que cativou as pessoas. Acho que há um anseio das pessoas em conhecer as nossas próprias histórias. O livro permitiu ao público acessar um pouco da história nacional. Não vou negar que o sucesso do livro não me afeta de alguma forma. Por exemplo, eu já não consigo dar conta de tudo, de todos os convites para entrevistas e palestras. Por essa razão, tenho tentado estabelecer uma grade de proteção para que eu saia ileso disso tudo, pois, tenho novos projetos literários pela frente.
Rodolfo Capler – Na sua opinião qual é a importância do ofício de escritor num país com baixíssimos índices de leitura como o Brasil?
Itamar Vieira Junior – No início da nossa entrevista eu te falei que não tinha nenhuma religião. Na verdade, a minha religião é a literatura. Eu professo fé na literatura. Acredito que somos humanizados por ela. A literatura nos permite o exercício da alteridade, como nenhuma outra expressão artística o faz. Quando lemos um livro, nos colocamos no lugar duma personagem e pensamos com ela. Isso tem o poder de transformar as nossas vidas. Me lembro do livro “A invenção dos direitos humanos”, da historiadora estadunidense Lynn Hunt. Ela fez uma pesquisa sobre o nascimento dos direitos humanos e demonstrou que no fim do século XVIII, a literatura foi um dos pilares da evolução da compreensão de direito humano. O livro é muito interessante porquanto desvela como os romances publicados naquela época infundiam o ideário dos direitos humanos nas mentes dos leitores. Acho que a literatura pode nos entregar esse tipo de coisa de uma maneira muito efetiva. Um escritor, quando escreve, está, ao mesmo tempo, refletindo sobre seu tempo. Até mesmo quando ele escreve uma ficção histórica, ele o faz à luz do que conhece hoje e, assim, dá um testemunho do país. Algo que eu não me esqueço é que o escritor norueguês Jon Fosse, mora numa residência restrita a escritores. Como ele é um grande escritor da Noruega, é tratado como uma se fosse uma pessoa muito importante, como um rei ou uma autoridade política. Isso é muito interessante. A literatura deve ser tratada sempre com primazia e deferência.
Rodolfo Capler – Quais são suas principais influências literárias?
Itamar Vieira Junior – Eu sempre fui um leitor voraz e desde muito jovem li muita coisa. Por essa razão, valorizo muito a literatura brasileira. A nossa literatura é uma potência. Inclusive, acredito que se o prêmio Nobel de literatura ainda não foi contemplado por um brasileiro, isso não se deve a nossa falta de bons escritores e de boas obras, mas, unicamente, ao jogo de forças que faz parte da escolha dos vencedores. As minhas maiores influências na literatura nacional incluem os seguintes autores: Machado de Assis, Jorge Amado, Lima Barreto e Clarice Lispector. Na literatura universal, eu destacaria José Saramago, William Faulkner e Tony Morrison. Eu estudei a obra desses autores e os conheço profundamente. Eu poderia mencionar muitos outros autores que me influenciaram profundamente, mas se o fizesse esta entrevista não acabaria nunca (risos).
Rodolfo Capler – No último pleito à presidência da República você declarou voto ao presidente Lula. O que a vitória dele representa para um homem negro e nordestino como como você?
Itamar Vieira Junior – O presidente Lula é a maior liderança popular de nossa história. Ele tem uma vida política linda, sendo uma personagem fundamental para compreendermos o fim da ditadura militar e o restabelecimento da democracia no Brasil. Durante os seus mais de quarenta anos de atuação política Lula se mostrou um líder popular que fez a diferença em relação aos mais pobres. A volta dele à presidência da República significa conciliação.
Rodolfo Capler – O que você espera do novo governo em relação à cultura?
Itamar Vieira Junior – O período em que o PT governou foi marcado por muitas políticas públicas voltadas à cultura. Tanto o cinema brasileiro, quanto a produção literária cresceram em qualidade e em quantidade naquele momento do país. Acho que o presidente Lula continuará valorizando a cultura em seu novo governo. Prova disso é que ele costuma indicar livros em suas redes sociais. Ele não o faz para chamar a atenção, mas, porque, valoriza a literatura e entende a importância da cultura na vida das pessoas. Quando ele dizia em sua campanha “mais livros e menos armas”, ele não lançava mão de uma retórica, mas expressava a compreensão de que os nossos problemas não serão resolvidos com armas. Eu acho que o novo governo fará grandes realizações na área da cultura.
Rodolfo Capler – Após esse período eleitoral, qual mensagem você gostaria de deixar aos brasileiros?
Itamar Vieira Junior – Eu acredito que todos nós queremos um país melhor, mas, muitas vezes, por caminhos diferentes. Creio que nessa nossa busca por um Brasil mais justo, muitas vezes erramos a mão e acabamos gerando divisões entre as pessoas. A mensagem que deixo aos brasileiros é a seguinte: foquem naquilo que é consenso entre nós. Eu duvido que os brasileiros, independente do candidato presidencial que tenham escolhido, não queiram uma educação melhor para o nosso país. Por mais disputada e acirrada que tenha sido a última eleição, ela não nos destitui de nossa humanidade. Que possamos respirar e pensar no futuro do nosso país de uma maneira honesta e sincera. Se isso acontecer, todos nós sairemos vitoriosos.
* Rodolfo Capler é teólogo, escritor e pesquisador do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia da Fundação São Paulo/PUC-SP