A inauguração de uma cafeteria em local de tortura na ditadura
Ou… o café com sangue no Brasil sem memória

É Natal, eu sei!
Diferentemente de anos anteriores, não trarei texto algum sobre o espírito desse tempo, tampouco falarei das experiências que tive com meu avô, um pastor presbiteriano nordestino, em outros natais.
Hoje falarei de algo desesperançoso, triste, que me levou ao enjoo e à tontura nesta semana no Brasil. É aquele momento em que os piores temores sobre seu próprio país se confirmam.
Fiz uma viagem rápida para a Argélia recentemente onde pude conhecer um pouco da história desse gigante país africano banhado pelo mar mediterrâneo.
Colônia francesa por mais de 130 anos, a Argélia viveu uma guerra sangrenta de independência e de descolonização, das mais ferozes do continente, entre 1954 e 1962.
Mais de 300 mil argelinos e 27 mil soldados franceses morreram.
O povo argelino tem orgulho da revolução que colocou para correr os colonos da França, reconhecida como berço do Iluminismo, mas que na Argélia dominou, massacrou e matou argelinos.
Em 1945, por exemplo, quando o mundo comemorava a vitória dos aliados contra o nazismo, o exército francês fez um massacre contra cidadãos inocentes nas cidades Châbat Lakhra e Khrata Bejaia.
Eram os iluministas jogando crianças, jovens, idosos desarmados da ponte. Um verdadeiro crime de guerra. E sabem por que sei disso?
No Museu Nacional de Moudjahid, que funciona todos os dias embaixo do Monumento dos Mártires, até as 23 horas, tem uma maquete contando a história do banho de sangue.
A tortura imposta pelo exército francês aos argelinos também está exposta em cenas trágicas montadas em tamanho real com bonecos, mostrando paus de araras, choques elétricos, afogamentos, entre outros.
A República Democrática e Popular da Argélia hoje também é contestada por violações de direitos humanos e falta de transição de poder, mas os locais onde aconteceram esses horrores foram transformados em ocas de memória e verdade.
A um oceano Atlântico de distância dali, na cidade de Vila Velha, Espírito Santo, no Brasil, o 38º Batalhão de Infantaria — palco de torturas durante a ditadura militar, como os choques elétricos dos franceses nos argelinos — abriu o Café Vista do Forte. Fica dentro do Forte São Francisco Xavier da Barra, construído em meados do século XVII, que é parte do batalhão.
A construção, parte semicircular e parte retangular, foi o local onde minha mãe, a jornalista Miriam Leitão, ficou presa em isolamento. Lá, mesmo grávida, foi deixada sem alimento e sem água, sofreu torturas psicológicas e físicas.
Na página 57 do meu livro Em Nome dos Pais, escrevo: “Certa noite, minha mãe foi avisada de que aquela poderia ser a sua última. Viu sua sombra projetada na parede branca do Forte São Francisco Xavier da Barra, construído em meados do século XVII, parte do 38º Batalhão de Infantaria. A sombra revelava um corpo mirrado, incapaz de enfrentar cães e fuzis, enquanto pensava no filho que carregava no ventre e em Marcelo, que ela temia estar morto”.
No prédio ao lado, nos primeiros dias de dezembro de 1972, meu pai, o jornalista Marcelo Netto, foi submetido a espancamentos, sem alimentação, sem água, sem usar o banheiro. Ele seria torturado por vários dias e ficaria preso (nove meses em uma solitária) até 1974, auge da violência do regime, perdendo todos os seus direitos civis, estudantis e políticos.
Há cinco dias recebi de uma fonte um vídeo que viralizou nas redes sociais, com mais de 433 mil visualizações, 27 mil curtidas e inúmeros comentários. Postado no dia 7 de novembro no perfil do Instagram “Curta Vila Velha”, numa colab com o perfil “Café Vista do Forte” e o perfil de Alê Guèdes.
“Confesso que estávamos esperando ansiosamente pela abertura do local que vamos mostrar para vocês hoje. Sim, estamos falando da Cafeteria do Forte, que fica nada mais nada menos do que dentro do Forte São Francisco Xavier da Barra, no 38º BI. Desde a primeira vez que estivemos no Forte, a sensação era de que faltava exatamente isso: poder tomar um belo café da tarde com essa paisagem incrível. E pronto, nossos pedidos foram atendidos e valeu a pena a espera. A cafeteria funciona no mesmo horário do Forte, das 14 às 20 horas. E, sim, é necessário fazer o agendamento no site do 38º BI. No entanto, engana quem acha que só pode ficar uma hora por aqui, ok? Você agenda e fica o tempo que quiser. Eu indico demais pegar o fim da tarde para aproveitar o pão de sol no Pier que fica logo ao lado do Forte. O café ainda não inaugurou oficialmente, mas já está aberto ao público e conta com deliciosas opções de doces e salgados. A vista é maravilhosa em qualquer hora do dia, inclusive à noite. Então, já sabe, né? Quer surpreender alguém com passeio para lá de agradável? Vem para a Cafeteria Vista do Forte, que não tem erro”.
No Em Nome dos Pais, conto parte da experiência que tive ao entrar, por um golpe de sorte, no 38º Batalhão de Infantaria.
É surreal, mas reflete bem a história do Brasil. O Exército negou diversas vezes o meu pedido para entrar no quartel, apesar de alugar o espaço para festas de casamentos, formaturas, entre outros eventos, e servir de hotel de trânsito para militares. É a tal forma de ganhar um extra, já que as Forças Armadas, mais uma vez golpistas no governo Bolsonaro, alegam ter pouco orçamento.
Após ser confundido como convidado de uma festa, entrei, filmei, mas não pude usar as imagens no documentário que leva o mesmo nome do livro porque o exército não autorizou, ainda que vídeos de festas de casamento no local circulem na internet.
Na página 165, relato o sentimento que tive: “Em uma parede, li uma estranha linha do tempo que aumentou minha revolta. Ela marcava as conquistas militares dos últimos séculos. 1956 — autorizado pelo presidente o envio de um Batalhão a Suez para integrar a Força de Emergência; 1995 — missão de observadores militares do Equador e Peru; 2004 — início da missão das Nações Unidas para estabilização no Haiti.
Faltou registrar:
1972 — aqui nós torturamos, colocamos uma jovem de dezenove anos com uma cobra numa sala escura. Chutamos o ventre de uma mulher grávida. Deixamos um jovem de vinte e dois anos ser torturado. Aqui nós machucamos, ferimos, seviciamos, marcamos e destruímos famílias”
Na memória daquele lugar não estão preservadas as torturas que o Exército praticava contra cidadãos desarmados, muitos deles jovens recém chegados à vida adulta. Não há o reconhecimento público daqueles fatos. Apenas relatos das vítimas, que sempre encontram a parede da negação e do silêncio.
O país dos conchavos políticos, único no mundo que não fez uma justiça de transição após um regime de exceção, não faz museus sobre a violência do Estado, nunca viu um torturador do regime na cadeia, nem vai ver. Os prédios públicos com capítulos macabros como uso de uma jiboia em sessões de tortura contra mulheres não se envergonham de, na sala ao lado, abrirem uma cafeteria com quitutes de todos os tipos, doces e salgados.
Viva a forma como a Argélia conta sua história!
Feliz Natal e desculpe o desabafo, leitores.