Táxi e Uber agravam injustiças no mundo da mobilidade
Serviço de transporte por automóvel piora os congestionamentos e oferece privilégios que comprometem a eficiência do sistema público*
Tudo indica que a última das preocupações dos brasileiros nas próximas semanas será o trânsito, como efeito das tentativas de contenção da epidemia de coronavírus. Muita gente vai gastar menos tempo nos seus deslocamentos ou nem vai se deslocar. Dá para aproveitar esse ganho de tempo debatendo um aspecto curioso e perverso da mobilidade urbana: a regulamentação do trânsito de táxis e de carros que atendem por aplicativo. Quem sabe, quando a tempestade passar, possamos encontrar solução pelo menos para alguns pequenos problemas que tornam infame a vida nas grandes cidades.
Diferentemente do que reza o senso comum, táxis não contribuem para a redução dos congestionamentos porque seus usuários teoricamente deixam o carro em casa. Pelo contrário, tanto eles quanto os veículos chamados por aplicativos pioram as condições de trânsito, como se verá mais adiante. Mas, completando a obra caótica, poluidora, enervante, barulhenta e insalubre que o tráfego de veículos realiza a cada dia nas metrópoles, o transporte público individual é também, por natureza, elemento de discriminação econômica e social – drama que se agrava ainda mais nos municípios que têm faixas de uso exclusivo para ônibus e permitem que táxis transitem nesses espaços.
Como numa via de mão dupla, vale ultrapassar uma questão por vez.
Por que táxi, Uber e congêneres pioram o trânsito
Para entender o problema é preciso adotar o ponto de vista dos outros usuários do sistema viário e não o do passageiro que vai, pimpão e contente, refestelado no banco de trás, celular na mão, nem aí para o que acontece em volta. Na verdade, esse passageiro e o motorista, que fatura uns trocados na corrida, são os únicos beneficiados numa situação que contribui para arruinar a mobilidade geral.
A questão é matemática e simples de entender. Se esse mesmo passageiro estivesse dentro de um veículo de transporte público – trem, metrô, ônibus e até van, onde elas são regulamentadas –, haveria um carro a menos nas ruas. Dez passageiros migrando do táxi ou Uber para os coletivos, dez carros a menos. Dez mil cidadãos fazendo a troca, dez mil carros, que ocupam, numa única fila, pelo menos 60 quilômetros – dois terços do tamanho regular do congestionamento diário medido minuto a minuto em São Paulo.
Na capital paulista, segundo a pesquisa Origem e Destino realizada pelo Metrô em 2017, são realizadas por dia perto de 500 mil viagens de táxis e carros solicitados por aplicativos. Ou algo como uma fila de veículos de 3 milhões de quilômetros, dividida ao longo de 24 horas, com máxima concentração no horário do rush. Em contrapartida, trens do Metrô e ônibus permitem o deslocamento de 10 milhões de pessoas por dia.
Claro que muita gente é contada duas vezes, nos dois sistemas, mas existem ainda os trens metropolitanos, as vans escolares e os coletivos fretados, que, se contabilizados, compensariam essa diferença. Então, resumindo, fica claro que essas 500 mil viagens particulares diárias contribuem, e muito, para o caos do trânsito. São 40 mil táxis e um número bem maior que esse de carros com atendimento por aplicativo congestionando ruas e, naturalmente, piorando a vida de quem usa transporte público.
Sempre há alguém disposto a argumentar que o passageiro de táxi não é o mesmo que vai de ônibus e que, se esses usuários de transporte exclusivo estivessem utilizando o transporte individual próprio, o problema seria do mesmo tamanho. Mas há um equívoco considerável nesse argumento.
Enquanto um motorista de carro próprio típico tira seu carro de manhã da garagem e se desloca até o trabalho, onde estaciona, na rua ou num local fechado, o taxista, ou motorista que usa aplicativo, sai de sua residência, roda sem usuário pagante por um bom tempo, desloca-se para atender um chamado e volta a andar sem passageiro depois de cada corrida.
Uma pesquisa de 2009 chegou a contar 70% de táxis desocupados passando por corredores de grande tráfego de São Paulo entre 15 e 20h. O porcentual, porém, não é realista, porque se tratava de um momento de preços muito altos. Para uma conta básica, considere-se que os carros de aluguel andam 20% do tempo sem passageiros. Isso é o mesmo que dizer que aquelas 500 mil corridas realizadas por dia ocupariam as vias por muito menos tempo caso fossem feitas em carros particulares. A lógica vale também para o deslocamento de quem vai ao shopping, ao médico ou à casa de um parente. O carro alugado sempre estará mais tempo criando tráfego do estaria um veículo particular.
A injustiça viaja nos corredores de ônibus
São Paulo e várias outras cidades adotaram nas últimas décadas as chamadas faixas de ônibus, a partir de um modelo desenvolvido em Curitiba. Trata-se de uma solução que, em corredores segregados, acelera bastante o transporte público, ainda que existam na capital paulista, por exemplo, gambiarras inacreditáveis, como coletivos biarticulados cruzando as faixas de uma avenida para entrar e sair desses espaços exclusivos.
Mesmo nas faixas de trânsito prioritário para ônibus, criadas do lado direito da pista, sem contenção da entrada de outros veículos, é indiscutível que o transporte coletivo se torna mais rápido – às vezes mais rápido até do que o deslocamento em carro particular. E isso tem sido motivo para muita gente passar a usar ônibus, deixando o carro em casa. Ar condicionado, wi-fi, integração de transportes e lotação tolerável, em diversas linhas, compõem um pacote mais atrativo do que ficar parado no carro.
Só que, com moedas eleitorais, a maioria das cidades libera também nessas faixas o trânsito de táxis, desde que ocupados. Não há dúvida de que o motorista e seu cliente, nessas condições, levam uma vantagem considerável – um porque fatura seu dinheiro mais depressa e outro porque chega mais rápido ao seu destino. Mas juntos produzem também um cenário de desigualdade na mobilidade urbana.
O taxista que usa a faixa de ônibus está tirando proveito de um sistema que foi criado para uso coletivo. O passageiro torna-se, por seu lado, um usuário exclusivo de um espaço público que deixa de servir ao propósito original. Seis táxis ocupam o espaço de um único ônibus biarticulado, que pode levar mais de 100 passageiros. Em qualquer faixa de ônibus de São Paulo, contam-se, de manhã ou à tarde, dezenas de táxis enfileirados entre os coletivos, atravancando a via, impedindo o fluxo normal tanto dos grandes veículos quanto dos que pretendem acessar a via principal pelas ruas afluentes.
Táxis X APPs. Ninguém se interessa pelos passageiros
É indiscutível que o serviço de táxis e de motoristas que atendem por aplicativo tornaram-se imprescindíveis aos usuários, mas a circunstância óbvia de que estão comprometendo o sistema que deveriam contribuir para melhorar não pode ser ignorada. Para continuar no cenário paulistano, onde a questão é mais grave, vale recordar que há projetos na Câmara Municipal propondo várias alterações no conjunto de leis que disciplina o serviço de transporte público por automóveis.
Colocadas em pauta desde o dia 12 de março, quarta-feira, as proposições contêm ideias que variam entre diminuir o total de carros operando por aplicativo, aumentar a quantidade de táxis, impedir o uso de automóveis com placas de fora da cidade pelos motoristas de Uber e assemelhados, proibir veículos de locadoras na prestação de serviço, subir preços e instituir taxas e impostos.
Nenhum trata dos problemas cruciais de melhorar a mobilidade, reduzir os congestionamentos e garantir que os melhores serviços sejam prestados à maioria dos que pagam impostos e precisam se deslocar diariamente num sistema eficiente e não expropriado pelos que têm o privilégio de pagar pelo uso do transporte individual.
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