Dom e Bruno: assassinatos completam dois anos em meio a julgamento travado
Jornalista e indigenista foram mortos em 5 de junho de 2022 no Vale do Javari, no Amazonas
Em 5 de junho de 2022, os assassinatos do indigenista brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips na região da terra indígena do Vale do Javari, no extremo-oeste do Amazonas, comoveram o Brasil, mobilizaram o poder público e tiveram grande repercussão internacional. O duplo homicídio, atribuído a pessoas envolvidas com a pesca ilegal, também disparou o alerta para um problema crescente e cada vez mais preocupante: o entrelaçamento das diversas modalidades do crime organizado na Amazônia.
O caso completa dois anos nesta quarta-feira, com atos e homenagens organizados por entidades e pelo governo federal, mas o julgamento dos envolvidos ainda caminha a passos lentos. Ninguém foi condenado pelos crimes até agora.
Ex-servidor da Funai, Bruno foi exonerado em 2019, durante o governo de Jair Bolsonaro, e passou a atuar como assessor na União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), a principal entidade representativa dos povos originários na região. Era grande conhecedor da área e costumava denunciar os crimes que ocorriam na floresta. Já Dom trabalhava para o jornal inglês The Guardian e estava escrevendo um livro sobre a Amazônia. Na época, o desaparecimento da dupla foi denunciado pela Univaja. Após dez dias de buscas das forças de segurança, com ajuda dos indígenas, os corpos foram encontrados esquartejados e carbonizados em uma área de mata fechada.
Os pescadores Amarildo da Costa Oliveira, conhecido como “Pelado”, seu irmão, Oseney da Costa de Oliveira, o “Dos Santos”, e Jefferson da Silva Lima, o “Pelado da Dinha”, estão presos pelos assassinatos. Amarildo e Jefferson confessaram o crime, mas alegam que foram ameaçados por Bruno e agiram em legítima defesa. Já Oseney nega envolvimento.
As audiências de instrução do caso começaram em março de 2023, em meio a adiamentos por falta de energia e dificuldades de conexão à internet nos presídios. Os réus foram ouvidos e, em outubro, a Justiça Federal de Tabatinga (AM) decidiu pela pronúncia – ou seja, o caso seria analisado pelo Tribunal do Júri. O juiz responsável considerou suficientes as provas de materialidade dos homicídios e ocultações dos cadáveres, mas a defesa recorreu. O recurso ainda não tem data para ser analisado pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1). Enquanto isso não ocorrer, o processo segue parado.
A defesa dos acusados é composta de seis advogados, entre eles Américo Leal, que ganhou notoriedade no julgamento do assassinato da missionária americana Dorothy Stang, com seis tiros em 2005, em Anapu (PA). Ele integrou a defesa do fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, sentenciado a trinta anos de prisão em 2013 por ser o mentor intelectual e mandante do crime. No julgamento, Leal disse que Stang “veio a morrer fruto da própria violência que pregou”, afirmou que ela era o “diabo” e acusou-a de estar a favor de um “projeto de colonização da Amazônia”. O advogado também fez parte da defesa do coronel Mário Colares Pantoja, condenado pelo massacre de Eldorado dos Carajás (PA) em 1996, quando dezenove trabalhadores sem-terra foram mortos por policiais militares.
O suposto mandante
Ruben Dario da Silva Villar, conhecido como “Colômbia”, está preso e foi indiciado pela Polícia Federal como suposto mandante dos assassinatos de Bruno e Dom, mas o Ministério Público Federal não apresentou denúncia até o momento. Ele é apontado como chefe de uma organização criminosa transnacional que atua com pesca e caça ilegal, lavagem de dinheiro, sonegação fiscal, desvio de recursos públicos e corrupção.
Como VEJA mostrou, a investigação sobre o funcionamento desse grupo, que corre em sigilo na PF em Brasília, ainda não terminou. O inquérito tenta esmiuçar as conexões da gangue com servidores públicos e políticos locais.
Um segurança particular de Colômbia foi detido em dezembro de 2023. Em janeiro deste ano, a PF também prendeu Jânio Freitas de Souza, apontado como seu informante e braço direito. Ele era funcionário na prefeitura de Atalaia do Norte, onde ocupava o cargo de auxiliar de serviços gerais, com salário de 1.200 reais — seu nome deixou de integrar a folha de pagamento em agosto de 2022, logo após os assassinatos de Bruno e Dom. Em depoimento, ao qual VEJA teve acesso, testemunhas afirmaram que Colômbia tem contratos com as prefeituras de Atalaia do Norte, Tabatinga e Benjamin Constant para transporte fluvial, incluindo o traslado de professores até comunidades ribeirinhas e indígenas.
A investigação em andamento já concluiu que o grupo chefiado por Colômbia também foi responsável pela execução de Maxciel Pereira, servidor da Funai morto em 2019, em Tabatinga. A motivação seria a mesma: o trabalho na proteção das terras e a fiscalização de pesca e caça ilegais prejudicava a atividade lucrativa da organização criminosa.
Os advogados de Amarildo, Oseney e Jefferson negam qualquer relação dos réus com Colômbia e afirmam que não houve mandante. Interceptações telefônicas, porém, mostram que só entre 2021 e 2022 houve 284 registros de chamadas entre Colômbia e Amarildo.
A cúpula da Funai
As investigações sobre o braço político da organização criminosa também chegaram a autoridades de fora do Amazonas. Em maio de 2023, a PF indiciou Marcelo Xavier e Alcir Amaral Teixeira, presidente e vice da Funai no governo Bolsonaro, por homicídio qualificado e ocultação de cadáver, em razão de omissão no caso.
Documentos mostram que servidores do órgão relatavam ameaças, incluindo ataques a tiros em postos de fiscalização, ao menos desde 2019. O próprio Bruno Pereira enviou um ofício à PF em agosto, um mês antes da morte de Maxciel, para pedir socorro. As investigações contra a cúpula da Funai, no entanto, foram suspensas por decisão do TRF-1. A medida foi considerada um retrocesso pela polícia, já que prejudica a continuidade da apuração sobre o papel de agentes públicos.
Durante as buscas pelas vítimas, Bolsonaro afirmou que o percurso feito pelos dois era uma “aventura não recomendável” e que Dom era “muito malvisto” na região.
Homenagens
O Ministério dos Povos Indígenas promove atos em memória de Bruno e Dom nesta quarta. No primeiro deles, realizado no cine Brasília, será transmitido um documentário sobre o caso, além da apresentação de um balanço das ações do governo federal para proteção territorial e garantia de direitos dos povos indígenas do Vale do Javari.
Também estão previstos pronunciamentos de representantes do Ministério da Justiça e Segurança Pública, da Funai, da embaixadora do Reino Unido no Brasil e das viúvas de Dom e Bruno, Alessandra Sampaio e Beatriz Matos, hoje diretora do Departamento de Proteção Territorial e de Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato do Ministério dos Povos Indígenas. Imagens das vítimas serão projetadas na Esplanada dos Ministérios, às 18h.