Seletividade alimentar: minha história traz alento e lições às famílias
Pediatra e nutrólogo compartilha sua vivência com a restrição de alimentos, processo superado com o avançar da idade e novas experiências de vida
Todos os meus amigos e alunos sabem que fui um grande seletivo, para desespero de minha mãe. Quando criança, preferia sempre bife, ovo e batata frita. Se tivesse fruta cortada, tinha de ser melada. Se fosse em suco, tinha de ser azeda.
Sou um hipersensorial: odeio sons altos (exceto quando são grandes orquestras ou a torcida do meu time) e não tolero pisar em algumas superfícies se estou descalço. Meus companheiros de trabalho e minha esposa acham que, de alguma forma, faço parte do espectro autista. Com muito orgulho e preservando minhas características pessoais.
O tempo, no entanto, foi passando e aprendi a comer. Viajo muito e experimento praticamente tudo (só não consegui comer anêmona-do-mar). Como de buchada a quiabo, e não nego ostras e caviar. E me delicio com arroz, feijão e carne de panela de qualquer boteco de esquina.
Portanto, quase todos os seletivos, e também os portadores de Transtorno de Restrição e Evitação Alimentar (TARE), podem modificar seus hábitos alimentares por ação de processos culturais, ambientais e sociais.
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Eu me lembro do caso de um familiar que só comia lombo e batata feita pela mãe, pizza branca (sem molho de tomate) e fast-food. Lógico que tudo isso cobra um preço no peso e no metabolismo. Um dia, ele foi chamado a trabalho a um país asiático e, em um almoço com seu chefe local, teve de comer peixe cru, temaki e companhia. Seria uma desonra ou uma desfeita não experimentar. Grande dúvida: perder o trabalho ou provar algo que seria inimaginável? Lógico que ele comeu.
Não estou falando apenas porque eu mudei. Mas porque essa condição aparece em inúmeros lares e trabalhos na literatura científica. E porque pode acontecer o oposto, e o seletivo intenso manter sua seletividade na vida adulta. Em aula, eu falo que eles seguem assim até encontrarem um parceiro parecido e viverem seletivos para sempre.
Bom, talvez isto acalme alguns pais, mesmo que eles sofram com a alteração social intensa que seus filhos apresentam, com dificuldades nos passeios, na escola, na casa de amigos e parentes, todos desesperados para que a criança coma o que é oferecido. Minha solidariedade com esses pais, mas também com essas crianças eternamente pressionadas, não raro vítimas de um assédio, ainda que bem intencionado, contínuo.
Muitos pais não sossegam enquanto a alimentação não se normaliza. Mas, cabe questionar, o que é uma alimentação normal?
Ora, isso me remete diretamente ao meu filho. Acho que, por ser uma pessoa mais fechada à divulgação nas redes sociais, ele não gostará tanto dessa pequena exposição de sua vida pessoal. Mas ele sempre foi um case para as minhas aulas e muita gente sabe que foi um seletivo importante no início da infância. Até comia bem saladas e frutas – bem como os alimentos básicos – desde que não se misturassem. Mas não tomava leite. Gostava mesmo de achocolatados sempre da mesma marca.
Ele era um expert no sabor desses produtos e, em uma ocasião, em que eu testava um achocolatado de leite de cabra, cheguei a apresentá-lo a seis concorrentes de marcas diferentes, em embalagens sem rótulo. E não é que ele conseguiu colocar em ordem de preferência, do produto que idolatrava ao novo item feito de leite de cabra?
Hoje, meu filho é um seletivo gourmet, cozinha bem e virou especialista em alimentos, temperos e bebidas. Seletivo do que é gostoso, escolhe apenas o que é bom, e come de tudo (ou quase tudo, porque nós seletivos temos de ter nossas diferenças).
Portanto, mesmo que seu filho coma mal – Meu Filho Come Mal é justamente o título de nosso livro feito em parceria com o Instituto PENSI -, tenha calma e paciência, converse com pediatras, nutricionistas e outros profissionais… E acredite: sua experiencia pessoal também se reflete no comportamento de seus filhos.
Toda a criança seletiva tem um familiar que também teve problemas com a comida, com experiências ruins eventualmente rodeadas de genitores e responsáveis ansiosos e apreensivos com a situação. Não sabemos ainda se é uma tendência genética, mas acreditamos em uma herança seletivogênica, isto é, que dá origem à seletividade.
Que a minha história dê alento a esses pais tão desesperados para que seus filhos comam bem.
* Mauro Fisberg é pediatra e nutrólogo, coordenador do CENDA – Centro de Excelência em Nutrição e Dificuldades Alimentares do Instituto Pensi/ Sabará Hospital Infantil e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)