Catarata, espelho das desigualdades na saúde brasileira
Estudo brasileiro identifica problemas de equidade: alguns enxergam rápido, outros permanecem na escuridão das filas
Poucas cirurgias carregam tanto poder de transformação quanto a de catarata. Em minutos, ela devolve visão, independência e dignidade a milhões de pessoas. Mas, no Brasil, esse procedimento cirúrgico convive com uma realidade incômoda: a desigualdade profunda no acesso.
Um estudo analisou a distribuição de oftalmologistas e o volume de cirurgias de catarata no Sistema Único de Saúde (SUS) e na saúde suplementar. Parte integrante da pesquisa Demografia Médica, coordenada pelo professor Mário Scheffer (USP), contou também com pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O retrato é revelador. Em números absolutos, o SUS segue como o maior provedor: foram quase 1,2 milhão de cirurgias em 2024, contra 664 mil realizadas pelos planos de saúde.
Quando se considera a população atendida, a balança se inverte. Foram 1.276 procedimentos por 100 mil beneficiários de planos, contra 736 por 100 mil pessoas que dependem do SUS. Portanto, a rede privada realizou 73% mais cirurgias. O Brasil se multiplica em Brasis: alguns enxergam rápido, outros permanecem na escuridão das filas.
As desigualdades também se revelam no distribuição geográfica. Enquanto o Sudeste alcança taxas acima de 1.000 cirurgias por 100 mil habitantes, a região Norte não chega à metade disso, com menos de 450 em 2024. Paradoxalmente, o Distrito Federal, que concentra a maior densidade de oftalmologistas do país, registrou um dos menores volumes cirúrgicos. A contradição mostra que o problema não é só o número de profissionais, mas também a organização do sistema de saúde, o subfinanciamento e a prioridade política.
Nosso estudo ajuda a explicar os porquês de, em 2025, a fila do SUS superar 168 mil pessoas e mais de quatro meses de espera, segundo levantamento da imprensa. Para quem convive com a visão progressivamente mais turva, a demora significa risco de quedas (fator associado à morbimortalidade entre idosos), perda de independência, aumento de sintomas depressivos e exclusão social.
Nossa análise também revelou a baixa produtividade média: cada oftalmologista brasileiro realiza menos de 100 cirurgias de catarata por ano, com variações impressionantes. No Piauí, são cerca de 180 procedimentos por médico, enquanto no Distrito Federal o número cai para menos de 22, reflexo da grande oferta de profissionais.
No cenário internacional, o Brasil também está aquém: nossa taxa de 868 cirurgias por 100 mil habitantes fica abaixo da de países como França, Canadá e Japão, todos com índices acima de 1.100. Superar o quadro exige mais do que mutirões episódicos. É preciso integrar recursos públicos e privados, remunerar adequadamente os profissionais do SUS, planejar a formação de especialistas segundo as necessidades regionais e garantir centros cirúrgicos contínuos.
A catarata não espera, é inevitável. E não deveria ser o CEP nem a carteira de convênio a definir quem e quando vai voltar a enxergar. O Brasil dispõe, sim, de médicos, tecnologia e experiência robusta para enfrentar o desafio da produção de cirurgias de catarata. O que falta é transformar esses recursos em acesso equitativo, sustentável e universal. Se conseguirmos avançar nesse caminho, será um desfecho verdadeiramente alvissareiro para a saúde pública brasileira.
*Gustavo Rosa Gameiro é médico e cientista, jovem liderança médica da Academia Nacional de Medicina e colaborou com a pesquisa sobre oftalmologistas e cirurgias de catarata
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