A “beiçoficação” na beleza moderna
Daqui a pouco, os lábios harmoniosos, discretos e belos é que serão motivo de surpresa, tornando-se o novo “anormal” estético

Há uns dias, abri uma das mídias sociais e assisti a uma celebridade que fazia apologia à “harmonização facial”. Ela dizia que os interessados deveriam procurar mãos experientes e especialidades peritas no assunto para um resultado garboso.
Na realidade, fiquei em choque! Seu rosto parecia um campo de batalha de duas vizinhas de andares distintos de um prédio: a vizinha do andar de cima, o lábio superior, que, naquela representação caricata de beleza, batizei de “beiçola”, invadia a área privada da vizinha de baixo, a menos exagerada “dona beiça”, escondendo por completo a parte mais interessante de um sorriso, os dentes. Parecia que a distância do espaço entre a inserção inferior do nariz até o limite inferior do vermelhão da “beiçola” ocupava 90% de seu rosto. Não me pergunte se a cor de seu cabelo estava diferente do que sempre foi, porque nada mais me prendeu a atenção.
Nada contra os anseios e condições que conduzem as pessoas a fazer suas escolhas individuais, afinal, cada um sabe onde o calo aperta. Porém, ir a público, sem o mínimo de autocrítica, levantar bandeira para o “belo desfigurado” e, pior, cheio de vieses de conteúdo médico-científico, é muito perigoso. Isso estimula o levante social de que o padrão esdrúxulo da feiura artificialmente produzida é o novo normal, já que, como diz Caetano Veloso, na letra da música Sampa, “é que Narciso acha feio o que não é espelho”. E espelho referendado por alguém famoso pode parecer ser mais espelho ainda.
Sem dúvida alguma, o padrão de beleza evolui e é parte importante da história e cultura de sociedades e civilizações, mas o bom senso é o que impera. Tivemos uma Grécia Antiga, com sua beleza harmoniosa, vigorosa e esguia. Uma Idade Média, sob a influência do recato divino-moral da tradição judaico-cristã, com suas vestimentas pudicas que escondiam possíveis imperfeições corporais, indícios da punição deífica pela ofensa à alma, vulgo pecado. O Renascimento, com a beleza corpulenta, muito bem representada em “As Três Graças”, de Rubens, que ganhou um aliado importante, o espartilho, para tornar a opulência, a seu montante e jusante, ainda mais pronunciada. No mundo moderno, tivemos várias referências, como, por exemplo, as formas cúbicas, comedidas e de cabelos curtos, frutos do desejo político pela emancipação feminina dos anos 20 e 30, e a forma torneada, esguia e de cabelos esvoaçantes, à Farrah Fawcett, dos anos 80 e 90, coroada pelas mamas fartas, siliconadas, dos anos 2000.
Mas, e os lábios? Bem, tirando o botoque, disco labial de madeira usado por líderes caiapós brasileiros e de algumas etnias africanas, que, aparentemente, não angariou adeptos cosmopolitas, os lábios sempre foram negligenciados. Contudo tudo mudou com o advento dos preenchedores dérmicos à base de ácido hialurônico, no final dos anos 90, popularizados anos 2000. No início, era só uma injeção de volume discreto para dar um “glow” tímido a um lábio pouco favorecido. Mas, com o tempo, as ruas foram inundadas pela ousadia de injeções mais volumosas que almejavam lábios menos recatados. Passamos a cruzar com transeuntes de lábios descomunais, quase como se tivessem passado um noite inteira de amores com um taturana. E isso tem se tornado assustadoramente costumeira.
Entretanto de quem é a culpa? Eu acho que há uma combinação de culpados: profissionais injetores imprudentes e pacientes ansiosos por uma beleza desmedida. A isso, juntam-se a liberação controversa desse procedimento para ser realizado por profissionais da saúde não médicos, uma vez que não adianta só injetar, mas precisa saber tratar as complicações e resultados excessivos (ou será que irão encaminhar para que os médicos as tratem); a negligência e corpo mole eleitoreiros governamental; e os interesses econômicos dos fabricantes de preenchedores que, quanto mais “treinam” os profissionais a injetar volumes exagerados, mais vendem.
Certamente, a essa altura, muitos devem se perguntar: – “afinal de contas, preenchimento labial é bom?” Claro que sim! Essa técnica traz benefícios estéticos ao rosto, mas desde que feita sob o olhar parcimonioso de profissionais peritos e experientes no assunto. Porém acho que aquela “tal celebridade” não teve tamanha sorte, pois posso lhes dizer que seu rosto estava realmente desfigurado, medonho! E ela dizia que ela tinha passado por uma “harmonização facial”.
Aqui, cabe uma ressalva ao termo “harmonização facial”. Sem dúvida alguma, devemos valorizar o espírito criativo do ser humano, mas para mim, a invenção comercial desse nome é infeliz. Ele persuade o paciente a se tornar refém do profissional que se apodera desse rótulo, dizendo-se perito em procedimentos faciais estéticos. É como ser quase impossível um paciente temer por resultados infortúnios vindos de quem faz “harmonia facial”, em relação àqueles que fazem “cirurgia facial” ou tratam as “inestéticas faciais”. Mais, esse termo induz o paciente a crer que, antes, qualquer procedimento estético realizado no rosto vislumbrava a desarmonia facial, desconsiderando, por completo, a existência consagrada da secular cirurgia plástica e da inovadora dermatologia estética.
De verdade, os dias “beiçudos” atuais me fazem ter uma solidariedade léxica com a pobre coitada “beleza”. Certamente, ela tem sofrido de crise de identidade, questionando-se se não é ela que está a ver o mundo moderno de forma demasiadamente sútil. Vai que o seu significado no “pai dos burros” mudou para “beleza é tudo aquilo que o dismorfismo corporal pode lhe trazer de prazeroso” e a desatualizada beleza nem percebeu?
Mas, por fim, vou lhes contar uma fofoca: quem entrou mesmo pelo cano foi a Antiga Grécia, aquela, sem preenchedor labial. Em vão, em suas representações monumentais helênicas, em museus mundo afora, ela tenta ensinar o padrão estético harmonioso de lábios genuínos, mas, infelizmente, a audiência atual desaprendeu a reconhecer.
Uma semana excelente (de “lábios” proporcionais) a todos!
