O Brasil ganha um museu que será símbolo da nossa luta antirracista
Com muito atraso, o país começa a valorizar o legado, as histórias e a cultura dos negros em um espaço cultural no coração da maior metrópole daqui
Em 2023, quando completamos 135 anos da abolição da escravatura, é possível olhando para trás e para a frente da história descobrir que, se não bastassem todas as violências e hostilizações contra o negro brasileiro, com a escravização e racismo, não tivemos capacidade sequer de reunir um inventário cuidadoso e bem formulado da trajetória histórica daqueles que por mais de 350 anos foram os braços, pernas e esteio da nação. Que forjaram e constituíram o cerne da nossa cultura e da nossa, digamos assim, civilização brasileira.
Nossa aversão pela estética miscigenada e nossa ojeriza à aceitação da contribuição da cultura negra para a formação do país ganharam foros de irracionalidade com a eugenia sendo gravada em plena sede constitucional e com a perseguição política cultural que, além de demonizar a manifestação religiosa negra, tornou crime a manifestação cultural da capoeira.
Esses seguramente foram os motivadores dos desleixos pecaminosos que permitiram que, no maior país negro fora da África e que por mais de quatro séculos manteve o regime de escravização, não tivesse, ainda, em pleno século 21, um equipamento de envergadura que valorizasse e dignificasse a história desses brasileiros. Sobretudo no Estado de São Paulo, o maior estado negro do Brasil. Sobretudo, na cidade de São Paulo, a maior cidade negra das Américas.
Foi a luta do movimento negro ladeado por muito brancos que permitiu com denúncia do racismo estrutural, do apartheid racial e do apagamento da estética negra reescrever a história do negro e, logo, do próprio país. Com essa luta, Zumbi dos Palmares, João Cândido, Luiza Mahin e todos os seus camaradas, as personalidades históricas deixaram de ser vistas como rebeldes sem causa, marginais torpes e desordeiros sociais para ser elevadas ao posto de heróis de todos os brasileiros. Com essa nova biografia e reconhecimento, passaram a listar nomes de ruas, viadutos e prédios. O aniversário do então desalmado e rebelde Zumbi dos Palmares tornou-se feriado em quase 2 000 municípios, quatro estados e oito capitais, inclusive São Paulo. Doze escolas da cidade de São Paulo receberam nomes de personalidades negras históricas.
Foram conquistas fantásticas e fabulosas. Mas, ainda assim, faltava um reconhecimento e um inventário que pudesse dar um tratamento de qualidade com apuramento técnico de primeira linha dos objetos de interesse artístico, cultural, científico, histórico dos negros. Um equipamento que pudesse reunir todos os traços dessa longa epopeia numa realidade vívida que iluminasse o passado e projetasse o futuro de forma categórica e definitiva. Um legado ainda que tardio da nossa geração para todas que vierem depois.
O Museu da História do Negro, lançado no último dia 13 de maio, em parceria com o Governo do Estado de São Paulo, a Prefeitura Municipal de São Paulo e a Universidade Zumbi dos Palmares, chega em hora certa para recolocar a história do Brasil e do negro no seu devido lugar e para continuar o esforço da promoção do reencontro do país com todas suas estéticas, histórias, narrativas, e consigo mesmo. Num prédio histórico construído pelo arquiteto Ramos de Azevedo em 1893, cinco anos depois da abolição, em frente ao metrô Tiradentes, ao lado dos Museu da Língua Portuguesa, Pinacoteca, Pinacoteca Contemporânea, Museu de Arte Sacra e nas proximidades da Sala São Paulo, ele fortalecerá esse potente cinturão cultural, respirará a cultura ali concentrada e beberá e exalará dessas fontes enriquecidas o melhor da museologia nacional.
Vida longa ao Museu da História do Negro!