Tragédia expõe em escala amazônica a ameaça de falência do Estado
Sobram evidências de anarquia e de desagregação estatal na governança de uma região que corresponde a 59% do território nacional
A tragédia de Dom Philips, jornalista, e Bruno Pereira, indigenista, expõe em escala amazônica a ameaça de falência do Estado brasileiro.
Sobram evidências de anarquia e de desagregação estatal na governança de uma região que corresponde a 59% do território nacional.
Era construção precária a rede institucional erguida desde o período colonial para dar visibilidade à soberania brasileira sobre as terras brasileiras na Floresta Amazônica, compartilhada com oito países vizinhos.
Está virando ruína com a prevalência do espírito de “liberou geral” em negócios de grilagem de terras, do narcotráfico, da exploração ilegal e do contrabando de madeira, de espécies animal, vegetal e mineral — nesse caso, ouro e cassiterita, principalmente.
Uma característica comum dos estados falidos é a existência de governos ineficazes e incapazes de manter controle sobre o território.
Certamente, é exagero afirmar que o Brasil sob Jair Bolsonaro se enquadrou nessa moldura de bancarrota. No entanto, multiplicam-se os sinais de avanço nessa direção.
Um amplo mercado informal floresce no Norte brasileiro, sob a rarefeita atuação das instituições estatais, com altas taxas de criminalidade e presença de grupos armados, milicianos e narcotraficantes.
No governo, no Congresso e no Judiciário não se admite, mas já predominam no controle de áreas-chave dos 4 mil quilômetros que separam os marcos de fronteira com Bolívia, Peru, Colômbia e Venezuela até os portos atlânticos de Itaqui, no Maranhão, e Pecém, no Ceará.
Polícias e Forças Armadas colecionam, há anos, evidências da ascensão operacional e financeira de máfias nacionais na Amazônia, em associação com transnacionais europeias, americanas, mexicanas e colombianas de narcotráfico e sua guarda narcoguerrilheira.
Alguma coisa está fora de ordem quando uma juíza federal precisa expedir sucessivas ordens ao governo federal para que “efetive imediatamente a obrigação de fazer”, ou seja, tomar providências necessárias para localizar duas pessoas em áreas sob “ameaça de ataques violentos e da presença de invasores”.
A juíza Jaiza Fraxe, de Manaus, foi além das reiteradas intimações ao governo para agir na busca pelo jornalista Philips e pelo indigenista Pereira.
Ela se viu obrigada a determinar à Fundação Nacional do Índio (Funai) que suprimisse de sua página na internet um comunicado governamental culpando as vítimas, ecoando Bolsonaro, e qualquer outro “atentatório à dignidade dos desaparecidos”.
Mandou a Funai evitar, também, qualquer ato passível de derivar em “injusta perseguição” aos que foram ao seu tribunal clamar pela vida do jornalista e do indigenista — especificamente, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) e os servidores da coordenação local da Funai.
Alguma coisa está fora de ordem quando, em Brasília, um juiz do Supremo Tribunal Federal traça em 29 palavras um retrato dramático do ônus imposto ao país por uma burocracia paralisante: “Registro com desalento o fato de que as Forças Armadas brasileiras não tenham recursos para apoiar uma operação determinada pelo Poder Judiciário para impedir o massacre de populações indígenas”.
O juiz Luís Roberto Barroso escreveu isso em despacho publicado em junho do ano passado, num processo judicial que relatava a história de um ano de sucessivas determinações do Supremo ao governo Bolsonaro para cumprir a Constituição, garantindo a a vida, a saúde e a segurança dos índios amazônicos Yanomami e Munduruku.
O caso começara no junho anterior, de 2020, quando as tribos recorreram ao Supremo para obrigar o governo a prestar-lhes assistência de saúde pública em plena pandemia.
Quase nada foi feito e, nos meses seguintes, garimpeiros, madeireiros e seus financiadores intensificaram invasões em terras indígenas, áreas reconhecidas na Constituição como bens da União inalienáveis, indisponíveis e com direitos imprescritíveis dos índios habitantes.
Ricas em ouro, as reservas Yanomami (Roraima) e Munduruku (Pará) se tornaram alvos do garimpo ilegal organizado em bases empresariais, com uso de maquinário pesado e caro, apoiado numa complexa rede logística de suprimentos (terrestre, aérea e fluvial), com características semelhantes às de um empreendimento de mineração de médio porte.
Multiplicavam-se os indícios da presença de grupos narcotraficantes, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), entre outros, no patrocínio do garimpo ilegal de ouro, no suprimento dos garimpeiros e no controle das principais rotas de navegação fluvial nas reservas indígenas.
O STF ordenou proteção armada. O Ministério da Defesa respondeu com a resiliência burocrática: “Sobre o assunto, esse Estado-Maior Conjunto informa que aguarda a disponibilização de recursos extraordinários (…) Dessa forma, o apoio previsto necessitará ser postergado, condicionado ao recebimento dos referidos créditos”.
Ou seja, o então ministro Walter Braga Netto avisava que não havia conseguido localizar no seu orçamento bilionário (R$ 8,4 bilhões) a mínima quantia necessária dar apoio logístico à Polícia Federal numa operação determinada pelo Supremo “para impedir o massacre de populações indígenas”.
Restou o desalento.