No epílogo, o governo Jair Bolsonaro decidiu investigar 3,3 milhões de pessoas. Todas pobres e dependentes de ajuda financeira estatal para sobreviver.
Passaram a ser suspeitas de fraude no Cadastro Único, banco de dados federal usado nos programas de assistência social e transferência de renda.
Nove de cada dez alvos do “processo de averiguação cadastral” iniciado nesta semana pelo Ministério da Cidadania são adultos que moravam sozinhos e tinham renda média de 210 reais mensais.
Conseguiram triplicar o rendimento domiciliar, a partir de outubro do ano passado, pelo acesso a subsídios do governo, como Auxílio Brasil, Tarifa Social de Energia Elétrica e Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social.
Agora, um mês depois das eleições, o governo resolveu obrigar todos a um recadastramento. Alega ter “observado um aumento gradativo do número de famílias unipessoais ao longo da história do Cadastro Único” e ameaça “cancelar benefícios”.
É um estranho caso de inflação da folha de pagamentos dos programas sociais durante a temporada eleitoral. No Natal passado eram 8,9 milhões de pessoas inscritas como famílias unipessoais. Agora são 13,9 milhões, informa o ministério. Houve um crescimento de 56% em doze meses.
Significa aumento contínuo de 416 000 beneficiários a cada mês. Representa 13 800 novos alistados por dia, contados os fins de semana e feriados.
É uma expansão ao ritmo de 577 novas inscrições por hora — nove indivíduos por minuto, sem intervalo e durante um ano inteiro, até o segundo turno das eleições presidenciais.
A oposição desconfiou, foi checar e confirmou: aumentou em 197% a quantidade de famílias unipessoais registradas no Bolsa Família/Auxílio Brasil nos últimos 46 meses; e, nesse período, cresceu apenas 21% o número de famílias com mais de dois indivíduos.
Sobram indícios de fraude. O governo correu para anunciar um rigoroso “processo de averiguação”. Semeou desconfiança pública sobre 3,3 milhões de pessoas pobres. Impôs a todos o ônus da prova de honestidade, a partir de um conjunto de regras — descritas em 9 200 palavras —, editadas pelo Ministério da Cidadania na semana passada.
“O governo semeia desconfiança sobre milhões de pobres”
A construção da suspeita coletiva é um conforto para o ministério, porque permite atribuir-se inocência prévia sobre eventual má gestão, incompetência e incúria.
O quadro, porém, é eloquente sobre seus protagonistas, a autoproclamada austeridade governamental, a realidade desse discurso e o discurso dessa realidade.
Na hipótese benigna, a burocracia federal cometeu erros em série na criação do Auxílio Brasil como substituto do Bolsa Família. Foram feitas sete mudanças em apenas três anos na estrutura desse programa de transferência de renda aos mais pobres. O serviço malfeito pode ter incentivado a inscrição em massa de indivíduos como famílias unipessoais. Se foi o caso, restaria apurar a responsabilidade dos ministros e gestores envolvidos.
Outra possibilidade seria a manipulação intencional dos programas sociais para obter vantagens no processo eleitoral. Naturalmente, é a suposição predileta da oposição, que em três semanas vai virar governo e demonstra aflição com a “quebra do Estado”, como tem repetido diariamente.
Seria um grave crime político, uma violação deliberada da Constituição, por ação ou omissão de agentes públicos, com consciência plena da transgressão cometida desde o início da temporada eleitoral.
Esse enredo de mistérios deixou espaço para todo tipo de conjectura em Brasília. Há quem ache conveniente enxergar uma simples e desastrosa coincidência, evocando o filósofo John Stuart Mill, para quem simultaneidade de acontecimentos pode ocorrer muitas vezes e ainda assim ser apenas casual. Céticos esgrimem com a recomendação do escritor Henry Miller: “Não se esqueça: toda coincidência tem um significado”. Já os desconfiados preferem Ian Fleming, criador de Bond… James Bond: “Uma vez acontece. Duas vezes é coincidência. Três vezes é ação inimiga”.
Num epílogo melancólico, o governo lançou suspeita sobre milhões de pessoas pobres, obrigando-as a provar que são honestas e, assim, tenta desviar a atenção pública sobre evidências da própria anarquia administrativa.
Em sua defesa pode até alegar que não houve manipulação eleitoral dos programas sociais, só de oferta de auxílio estatal aos eleitores mais pobres durante a temporada eleitoral.
Publicado em VEJA de 14 de dezembro de 2022, edição nº 2819