Completava-se um ano de ordens judiciais nunca cumpridas para assistência e proteção às vítimas. O governo continuava imóvel numa liturgia de burocracia rígida, centralizada e deliberadamente paralisante. Preparava uma nova versão do plano de socorro à população indígena no noroeste de Roraima, na fronteira com a Venezuela.
O quinto rascunho em doze meses era evidência de que a fome e as mortes dos isolados na selva não estavam na lista de prioridades do Palácio do Planalto naquele outono de 2021. Relevante para o governo era seu projeto (nº 191) de abertura das terras indígenas à exploração de ouro, cassiterita e petróleo, com uso dos rios para geração de energia.
Desde o início da pandemia, duas centenas de comunidades definhavam por doenças evitáveis como desnutrição, malária e verminoses. Estavam sitiadas pela violência de invasores, milhares de garimpeiros, financiados e escoltados por milícias do crime organizado. O Supremo Tribunal Federal, novamente, determinara intervenção emergencial, com uso de força policial, mas isso dependia da mobilização militar na região.
Sob pressão, o então ministro da Justiça e Segurança Pública, Anderson Torres, relatou ao STF dificuldades com o “apoio logístico a ser prestado pelas Forças Armadas”. Exemplificou com a correspondência que recebera do Ministério da Defesa: “Esse Estado-Maior Conjunto informa que aguarda a disponibilização de recursos extraordinários (…) Dessa forma, o apoio previsto necessitará ser postergado, condicionado ao recebimento dos referidos créditos”.
As Forças Armadas tinham 102 bilhões de reais reservados no orçamento federal, mas o então ministro da Defesa, Walter Braga Netto, alegava não ter dinheiro para ajudar no socorro aos ianomâmis em Roraima.
A renovação da negativa do governo foi remetida ao juiz Luís Roberto Barroso, no Supremo. Na terça-feira 1º de junho de 2021, ele escreveu 29 palavras no processo: “Registro com desalento o fato de que as Forças Armadas brasileiras não tenham recursos para apoiar uma operação determinada pelo Poder Judiciário para impedir o massacre de populações indígenas”.
“Uma rede de cumplicidades no morticínio dos ianomâmis”
Na sequência, Bolsonaro e os ministros da Defesa e da Justiça viajaram a Roraima para reuniões com garimpeiros. Braga Netto e Torres agora estão no centro de investigações sobre a tentativa de golpe de 8 de janeiro.
As digitais dos ex-ministros da Defesa e da Justiça estão espalhadas na crise humanitária dos ianomâmis. Morreram duas crianças por inanição e doenças evitáveis a cada semana dos últimos dois anos. Pela conta oficial, foram mais de 570 vítimas no governo Bolsonaro.
Na cadeia de comando dessa tragédia se destacam outros ministros além de Braga Netto e Torres. Um deles é Augusto Heleno, antigo chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência, que autorizou a expansão do garimpo de ouro na Amazônia.
Damares Alves, senadora eleita, admitiu que durante sua estadia no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos acumulou denúncias de violações aos direitos dos ianomâmis. Denunciada por conivência no morticínio na floresta, atribuiu aos ex-ministros da Justiça, Educação e Saúde toda a responsabilidade pela “política indigenista”.
Na lista de coautores também está um assessor de Bolsonaro, o empresário Nabhan Garcia, descrito pelo ex-presidente da Funai Franklimberg Ribeiro como personagem que “saliva ódio aos indígenas”. Garcia ajudou a derrubar Ribeiro, general da reserva, para nomear Marcelo Augusto Xavier da Silva, policial reprovado em exame psicotécnico, na execução da “política indigenista”.
Inquéritos e estudos acadêmicos demonstram há tempos como a rede de negócios obscuros na Amazônia prospera com vínculos políticos, entrelaçando atividades ilícitas no garimpo, na pesca, no desmatamento, na grilagem de terras públicas com narcotráfico e lavagem de dinheiro.
A proteção avançou sob Bolsonaro, cuja visão de “política indigenista” ele já havia resumido em discurso na Câmara, na quinta-feira 15 abril de 1998: “Realmente, a Cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a Cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema em seu país”.
Enrolados em processos domésticos, Bolsonaro e aliados agora devem enfrentar ações penais fora do país. Na Corte de Haia, por exemplo, que costuma surpreender políticos quando estão na planície, bem longe do poder.
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Publicado em VEJA de 1º de fevereiro de 2023, edição nº 2826