
Quando viu confirmada sua nomeação como embaixador do Brasil na China, o diplomata Luiz Augusto de Castro Neves procurou o representante chinês em Brasília. Conversaram sobre as razões daquele 2004 que justificavam otimismo sobre avanços nas relações entre Brasília e Pequim.
O tempo confirmou: um ano de comércio entre Brasil-China somava 6 bilhões de dólares duas décadas atrás; hoje, esse valor cabe no calendário de apenas quinze dias do fluxo comercial entre os dois países (foram 160 bilhões de dólares no ano passado).
Castro Neves preside o Conselho Empresarial Brasil-China e, nas reuniões, costuma recordar de um comentário do embaixador chinês: “O problema é que vocês não nos vendem nada, nós é que compramos de vocês”.
Passaram-se 21 anos e quase nada mudou. A China segue com a estratégia de expansão da influência e reivindica certificação global como rival dos Estados Unidos. Pequim mantém o Brasil como reserva estratégica de abastecimento de alimentos e minerais.
Em Brasília, no entanto, ainda não há clareza política sobre o que o país quer da China ou mesmo dos Estados Unidos. Não há, também, nitidez sobre a agenda nacional para o não alinhamento nessa guerra por outros meios entre potências. Muito menos sobre como se pretende extrair vantagens — e quais seriam — caso essa seja a opção.
Na semana passada, Lula telefonou para Xi Jinping, presidente da China, depois de conversar com os líderes da Índia, Narendra Modi, e Rússia, Vladimir Putin. O presidente brasileiro deu sentido de urgência à ideia de união contra a guerra econômica de Donald Trump. Sugeriu uma espécie de frente ampla no bloco de onze países conhecido como Brics, que ele preside até dezembro e no qual a China é absolutamente decisiva.
Ninguém se comprometeu. Lula tem bons motivos para estar enraivecido com Trump, mas o Brasil não é o único que está sendo esfolado pelo imperialismo americano. Na vida real, quase não existem interesses comuns entre Brasil, China, Índia e Rússia nas relações com os Estados Unidos. Entre China e Índia, por exemplo, os EUA são fator de antagonismo.
“Não está claro o que o governo Lula quer da China ou dos Estados Unidos”
No caso brasileiro, a questão central é a vulnerabilidade estrutural. O tarifaço de Trump está expondo a fragilidade do país em várias dimensões. Uma delas é a alta dependência da China, destino de um terço das exportações (77% concentradas em soja, minério de ferro e petróleo).
Outra é a insegura posição de fornecedor de produtos de baixo valor tecnológico, com algumas exceções relevantes como aviões, compressores e turborreatores, entre outros.
Os EUA são os principais compradores (20% do total) desses produtos industriais. A alta dependência do mercado americano começa a ser percebida na esteira do tarifaço, com fábricas anunciando férias coletivas em dezena e meia de estados.
Na segunda-feira 11, quando Lula telefonou a Xi Jinping, Trump havia acabado de realçar a vulnerabilidade brasileira. Ele escreveu numa rede social sobre a “preocupação” da China com o cenário de escassez de soja, acrescentando esperar dos chineses uma “rápida quadruplicação” das compras nas fazendas americanas.
Ninguém imagina Pequim viajando no tempo para voltar à dependência de Washington em dois terços do suprimento de commodities como soja. Mas, também, seria ingenuidade supor que o acerto comercial em negociação entre os Estados Unidos e a China não vá retirar do agronegócio brasileiro uma fatia do mercado chinês em benefício dos fazendeiros americanos.
É previsível, da mesma forma, que o recente acordo de comércio EUA-União Europeia reduza expectativas de alcance do tratado comercial Mercosul-União Europeia, negociado há duas décadas, assinado e ainda sem sair do papel.
Em 2004, Lula negociou uma “parceria estratégica” com o então presidente chinês Hu Jintao — nessa época Xi Jinping era um líder regional na província de Zhejiang. Entre outras coisas, acertou-se que o Brasil daria aval ao ingresso da China na Organização Mundial do Comércio, certificando-a para o jogo global da economia de mercado. Em troca, o governo brasileiro recebeu a promessa de apoio à ascensão ao Conselho de Segurança numa eventual reforma da ONU.
Lula voltou a Pequim no início do ano. Xi Jinping renovou sua oferta para adesão do Brasil ao programa chinês de comércio e investimento conhecido como Rota da Seda. Em troca, acenou de novo com a promessa de apoio à ascensão do Brasil ao Conselho de Segurança numa eventual reforma das Nações Unidas. Passaram-se duas décadas e quase nada mudou.
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Publicado em VEJA de 15 de agosto de 2025, edição nº 2957