
O ano começou com 95,3 milhões de brasileiros dependendo do Estado para sobreviver. Desde dezembro, quase metade (45%) da população passou a ser classificada pelo governo como “grupo vulnerável e/ou prioritário para acesso e usufruto” da assistência financeira estatal, estabelecida em duas dezenas de programas de transferência de renda.
Não é pouca gente. Fosse um país, seria o 16º no mapa-múndi, com maior população que Alemanha, Itália, França — e o dobro da Argentina, Espanha e Colômbia. Já representam mais de dois terços dos que vivem em estados como Amapá, Maranhão, Acre, Pará, Piauí, Bahia e Ceará.
Há três vezes mais pobres e vulneráveis no Amapá do que em Santa Catarina. Para o governo, é explicável não apenas pela diferença no estágio de desenvolvimento regional, mas também pela eficiência dos governos estaduais e prefeituras na operação dos mecanismos de proteção social. Nessa lógica, a burocracia do Sul seria historicamente menos produtiva e efetiva que a do Norte na garantia dos direitos sociais.
O fato é que o Brasil está com mais da metade (53%) da sua população adulta, em idade ativa para trabalhar e com título de eleitor no bolso, em crucial dependência dos cofres públicos para seguir vivendo, e, em boa medida, submissa à competência gerencial, ao humor e aos interesses políticos dos donos do poder. No governo e na oposição, essa massa pobre costuma ser percebida como o “ativo” político mais cobiçado do mercado eleitoral.
Não é por acaso que, em véspera de eleição presidencial, o governo discuta aumento no valor da assistência social, via Bolsa Família. Jair Bolsonaro fez isso na temporada eleitoral de 2021-2022, ampliando os gastos em cerca de 200 bilhões de reais. Lula debateu o tema, como alternativa para mitigar os efeitos corrosivos da inflação de alimentos — cerca de 60% da renda dos mais pobres é consumida na compra de comida. Ao comentar o assunto em público, na semana passada, o ministro Wellington Dias, do Desenvolvimento Social, pôs o pescoço na guilhotina.
O valor pago pelo Estado é sempre relevante, mas segue sendo o menor dos problemas dessa maioria de brasileiros pobres: as perspectivas deles estão cada vez mais limitadas. Oito em cada dez não completaram o ensino básico, indicam os dados do Cadastro Único, usado pelo governo federal e por estados e prefeituras na gerência da distribuição de dinheiro público no leque de programas assistenciais, que incluem Bolsa Família e Previdência Social.
“Mais da metade da população adulta depende do governo para sobreviver”
As carências educacionais restringem muito as possibilidades de emprego e renda dessas pessoas. Cada família inscrita no CadÚnico tem pelo menos um integrante no mercado de trabalho informal, onde o padrão de remuneração é baixo. A situação deles tem sido agravada por deformações na operação dos mecanismos de proteção social.
Uma delas foi relatada pelo economista José Pastore aos repórteres Claudio Conceição e Solange Monteiro, da revista Conjuntura Econômica. Empresas de construção tentam, com pouco êxito, recrutar operários entre beneficiários do Bolsa Família. Oferecem salários na faixa de 2 000 reais por mês, mas os candidatos relutam por temer a perda do dinheiro que recebem do governo se assumirem um posto no mercado formal de trabalho. Resultado: muitos só aceitam trabalhar na informalidade.
Empregos formais e com melhor remuneração existem, demonstram pesquisas da Fiesp. No entanto, mais da metade (55%) da indústria de transformação de São Paulo começou o ano com dificuldades para contratar, por falta de mão de obra qualificada, com formação educacional básica e adequada.
O horizonte não é dos melhores. Cristovam Buarque, inventor do Bolsa-Escola quando governou o Distrito Federal, nos anos 1990, analisou os resultados do último Censo e chegou à seguinte conclusão: dos 2,5 milhões de brasileiros nascidos no ano passado, no máximo 500 000 devem concluir o ciclo educacional básico. Assim, esses brasileiros chegariam aos 18 anos de idade medianamente alfabetizados, em situação absolutamente precária para o mundo de 2042, que se prevê transformado na era da inteligência artificial.
Ex-ministro da Educação, ele se diz convencido de que o Brasil está fazendo uma opção preferencial pela construção de um “Titanic negreiro”. Resume: “É negreiro porque os porões estão repletos de pobres e é ‘Titanic’ porque os ricos seguem no convés, bebendo champanhe, mas sabendo que estamos avançando diretamente para um iceberg lá na frente”.
Se os otimistas acham, os pessimistas têm certeza de que se vive hoje no melhor dos mundos. Sobra pouca margem para dúvidas diante da realidade de um país com quase metade da população dependente do governo para comer ao menos uma vez por dia.
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Publicado em VEJA de 14 de fevereiro de 2025, edição nº 2931