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O poder paralelo

Um curioso caso de pedido de socorro ao Estado contra o Estado

Por José Casado Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 12h09 - Publicado em 17 set 2022, 12h30

O Fubaquistão existe. Fica nas franjas de Cascadura, bairro carioca onde o último vestígio relevante de presença estatal data de século e meio atrás, na construção da Estrada de Ferro Dom Pedro II.

Na semana passada apareceu uma faixa de protesto na entrada da favela, depois da morte de um turista americano surpreendido no meio de um tiroteio. Obra coletiva dos sobreviventes de oito meses de guerra entre narcomilícias, é um curioso pedido de socorro ao Estado contra o Estado.

São 63 palavras em destaque: “Nós, moradores e comerciantes do Morro do Fubá, não aguentamos mais cobranças em nossa comunidade. Proprietários de casas e lojas estão sendo obrigados a pagar uma segurança (via Pix) que não temos, e tudo isso sendo feito aos olhos da PMERJ que vem apoiando os milicianos com essa falsa ocupação. Nós somos os verdadeiros financiadores dessa guerra! Queremos paz. Libertos dessa falsa segurança”.

Fotografias do pano pendurado em fios foram espalhadas nas redes com queixas adicionais sobre a amnésia política: “Somos lembrados apenas em época de eleição”.

Fubaquistão é parte de um Brasil onde a vida sob a Constituição ainda é mera probabilidade, apesar de a lei completar 34 anos de vigência no próximo 5 de outubro. Das favelas à Floresta Amazônica, não são poucos os trechos do território nacional onde a realidade constitucional naufraga na confluência de interesses privados e predatórios. Manipula-se o Estado numa implementação seletiva da Carta, como define o professor Joaquim Falcão, fundador da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas, do Rio.

No Rio tem-se a moderna tradução do Estado miliciano. Armas de guerra dividem a paisagem com o mar, palmeiras e trens suburbanos. É a terra onde mais florescem grupos armados sob patrocínio estatal.

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Nos palácios celebram-se liturgias de leniência com o crescimento da influência desses paramilitares em instituições públicas. Eles garantem votos. Em troca, recebem apoio tácito no avanço de negócios lucrativos — controle do gás de cozinha, da luz residencial e da TV a cabo, com parcerias em jogos e em entrepostos de drogas nas margens da Baía de Guanabara.

“Um curioso caso de pedido de socorro ao Estado contra o Estado”

O monopólio da violência é do Estado, segundo a Constituição. No Rio, a milícia se tornou o Estado. Já nem se dissimula a trapaça: Allan Turnowski, candidato a deputado federal pela fração bolsonarista do Partido Liberal, foi preso na semana passada como agente duplo, acusado de servir à lei e ao crime nos 27 anos de carreira pontuada por duas estadias no comando da Polícia Civil (entre 2009 e 2011 e de 2020 a março deste ano).

Uma investigação transparente sobre o candidato Turnowski, que nega tudo, iluminaria parte dos porões da política no eixo Rio-Brasília. Daria pistas sobre a influência nos três poderes e a dimensão dos lucros obtidos pelos grupos que mantêm 16 milhões de pessoas reféns da liquefação política, institucional e financeira do estado do Rio.

Na última década e meia, essas holdings do crime expandiram em 387% o território dominado no mapa estadual. Aumentaram a hegemonia sobre negócios ilícitos em 10% da área metropolitana. E substituíram a Constituição por leis próprias na vida de 3,7 milhões de pessoas — 41% mais gente subjugada do que quinze anos atrás, constatam pesquisadores da Universidade Federal Fluminense e do Instituto Fogo Cruzado.

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Se exposto ao sol, o caso Tur­nows­ki poderia contribuir, também, para a compreensão dos mecanismos de controle político que oxigenam as finanças das gangues. Essa engrenagem funciona, por exemplo, em 468 seções da capital, com capacidade de influência sobre o voto de mais de 610 000 eleitores (12% do total da cidade do Rio) — observam juízes que estudam a evolução de votações concentradas em candidatos apoiados por narcomilicianos da Zona Oeste.

A eficácia dessa estrutura foi reafirmada nas últimas eleições gerais. Jair Bolsonaro, por exemplo, foi beneficiário de mais de 60% dos votos em quarenta das 49 zonas eleitorais da cidade do Rio. Só perdeu (com 48,8%) no bairro de Laranjeiras. Em 22 zonas cariocas, sobretudo nas da Zona Oeste, arrebatou mais de dois terços das urnas. É caso de empatia jamais disfarçada por Bolsonaro e seu clã parlamentar. Nos últimos vinte anos foram pródigos na defesa e em homenagens aos “heróis”, entre eles um certo capitão Adriano da Nóbrega, expulso da Polícia Militar e abrigado no Escritório do Crime, empreiteira miliciana especializada em assassinatos por encomenda.

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 21 de setembro de 2022, edição nº 2807

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