Faz tempo que Lula deixou o poder. Foi em 2010, quando a Apple lançou o primeiro iPad e o épico Avatar ocupou as telas e as bilheterias dos cinemas. Na lua Pandora de James Cameron, humanoides nativos falavam na’vi, língua artificial criada pelo pesquisador Paul Frommer para o filme. Diziam “tswal” em referência ao poder real. Às vezes, acrescentavam: “Skxawng rä’ä lu!” Em português: “Não seja idiota!”
Lula está de volta, mas o mundo é outro. Presidentes já não têm tanto poder — o “tswal” em na’vi —, como uma dúzia de anos atrás. O Congresso limitou a capacidade de o governo agir e produzir efeitos. O Supremo Tribunal Federal avançou, sobrepondo sua interpretação da Constituição à da maioria do Legislativo e do Executivo, com frequência anulando atos dos eleitos e legitimados nas urnas.
Evidência desse novo tempo está no domínio do Orçamento. Quando Lula, o metalúrgico, liderava greves no ABC paulista de 1979, o peso de um ministro em Brasília podia ser medido por sua influência sobre a receita e os gastos federais.
Com Delfim Netto, no governo do general João Figueiredo, não faltava dinheiro para a Agricultura. Depois de cinco meses no ministério, ele mudou de lado do balcão, e foi parar no Planejamento, onde tesoura era sinônimo de poder.
Um dia um assessor contou-lhe que Ângelo Amaury Stábile, seu sucessor no ministério, não estava aceitando cortes estabelecidos no Orçamento. Insistia em receber os bilhões extras que Delfim garantira durante a estadia na Agricultura.
— Ângelo enlouqueceu! — retrucou Delfim. — Estamos com déficit enorme. Pode cortar, pode cortar.
O assessor argumentou:
— Mas, ministro, veja bem, foi o senhor que fez o Orçamento e ele é o seu sucessor.
— Não se preocupe com isso. Já falei com os dois. Antecessor e sucessor já mudaram de ideia.
— Como?
— Acabei de ter um ótimo monólogo com eles…
Lula migrou da vida sindical para a política nos anos 80, a bordo de um mandato de deputado federal constituinte. A Carta de 1988, que relutou subscrever, deu ao Legislativo a chave para controle do Orçamento, função constitucional elementar nas democracias.
“A Presidência perdeu poder, e a oposição deverá controlar Câmara e Senado”
O Congresso entrou em transe.
— Acabou o debate e o discurso; agora só vai se tratar de cofre — constatou Ulysses Guimarães, condutor da Constituinte, em conversa com o então jovem deputado Heráclito Fortes.
O primeiro escândalo não demorou. Quatro dezenas de parlamentares foram flagrados em transações obscuras com verbas federais. Abriu-se uma CPI, e seis cabeças rolaram no plenário.
Lula chegou ao Palácio do Planalto na década seguinte com uma bancada expressiva (129 no plenário de 513 deputados), mas insuficiente para passar seu projeto reformista na Câmara. Nasceu, então, a “maior base parlamentar do Ocidente”, financiada fora do Orçamento, com o dinheiro de empresas fornecedoras do governo. O custo político foi exponencial no mensalão e petrolão: 107 foram condenados, entre eles Lula, preso por 580 dias.
Na época eram comuns filas de parlamentares à espera de audiência nos ministérios. Nesta primavera, ministros correm atrás de líderes partidários para assegurar verbas essenciais à gestão.
A mudança na paisagem do poder é consequência do mais recente avanço do Congresso no comando de um quarto dos recursos do governo para custeio da máquina burocrática e investimentos.
Jair Bolsonaro topou entregar parte desse dinheiro (cerca de 19 bilhões de reais por ano). Em contrapartida, assegurou a candidatura à reeleição e o “esquecimento” de centena e meia de pedidos de impeachment numa gaveta da presidência da Câmara. Esse orçamento secreto, ou paralelo, garantiu a reeleição de seis de cada dez deputados dos partidos Liberal, Progressistas e Republicanos, locomotivas do Centrão.
Lula tem se surpreendido com as fronteiras de mando nesse novo mundo, a Pandora brasiliense. Elas são definitivas. Ilude-se quem imagina o Congresso revogando sua autonomia sobre o Orçamento, assim como o Centrão devolvendo cargos-chave nas agências reguladoras e empresas estatais.
O jogo vai ser duro. É provável que Lula atravesse metade do mandato com a oposição no controle da Câmara, com o PP de Arthur Lira, e do Senado, com o PL de Valdemar Costa Neto, que avisa: “Vão ter que compor com a gente, senão… Temos várias comissões, o plenário não vai funcionar… Vai ser um inferno”.
Para sorte de Lula, muitos no Congresso não conhecem o significado da palavra “oposição”. Preferem sofrer no poder a viver longe dele.
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Publicado em VEJA de 16 de novembro de 2022, edição nº 2815