A participação foi recorde: num domingo de primavera, 123 milhões de pessoas saíram de casa para votar, concentraram nove de cada dez votos em dois candidatos e mandaram Lula e Jair Bolsonaro disputar a grande final no dia 30, outro domingo.
Permanece um mistério por trás desse engajamento político, que é crescente há três décadas: por que ainda não resultou em políticas governamentais eficazes para resgatar metade do eleitorado da longa viagem na montanha-russa da pobreza?
Lula e Bolsonaro têm evitado respostas objetivas. Atravessaram a campanha sem mostrar as cartas de navegação rumo ao futuro, principalmente na economia, caso sejam eleitos. Um limitou-se a acenar com a volta ao passado e outro com mais do mesmo presente. Com a divisão do país cristalizada no primeiro turno, aniquilam-se justificativas para manter escondidas as propostas de governo.
Os dois candidatos já gastaram cerca de 6 milhões de reais em dinheiro público com pesquisas para mapear as expectativas das dezenas de milhões de eleitores cuja renda não ultrapassa 500 reais por mês. A mensagem comum captada nas sondagens foi a de que esperam mais do que a subsistência durante o próximo governo.
Em contraste, tem sido notável a incapacidade de levar ao debate público ideias novas para mudanças na vida dessa maioria (55%) do eleitorado que depende da ajuda do governo para sobreviver. No vácuo, florescem perplexidades.
A direita liberal-democrata está espantada com a própria incompetência. Não conseguiu construir uma alternativa eleitoral viável a Bolsonaro e ao seu enredo fantasioso de uma sociedade conservadora ordenada pelo cristianismo primitivo e submetida a uma hierarquia social na qual pessoas com renda acima de 2 700 reais pertencem ao clube dos mais ricos da população.
“O placar das urnas não deixa espaço para ilusões”
A esquerda aglutinada no lulismo, refém do histórico de corrupção, mostra-se atordoada com a “surpresa” da competição na hegemonia das ruas. Enfrenta um presidente manipulador do Orçamento e da estrutura burocrática — como alguns antecessores —, mas com talento de palanque comparável ao de Lula na capacidade de arrebatar a massa usando linguagem que ela entende. Pior: no governo, como ele diz, dedica-se a “desfazer” e a “destruir” os modestos ensaios reformistas dos treze anos de governança do PT, que “distribuía o que tinha, mas não redistribuía”, na precisa definição do historiador José Murilo de Carvalho.
Bolsonaro e Lula são políticos profissionais, mas de índole diferente. Em 1999, por exemplo, o petista foi para casa curtir a derrota no primeiro turno para Fernando Henrique Cardoso. Nas madrugadas insones, abria a geladeira, via as luzes e não resistia a um breve discurso naquele “palco” iluminado. Já o deputado não gostou de ver rejeitada sua pretensão de indicar um ministro da Defesa: subiu à tribuna da Câmara e, depois do ritual de elogios à ditadura, propôs o fuzilamento do presidente.
Hoje, eles protagonizam o epílogo de um ciclo geracional que rumina mais frustrações do que êxitos nos projetos desenhados para o país. Na campanha, por enquanto, não conseguiram ir além da insinuação velhas receitas para os impasses de um novo mundo assentado na economia “verde” e digital. Prometem, mas não explicam como vão garantir mais comida na mesa das famílias, acesso à saúde e à educação, e salários suficientes para as contas do mês com empregos qualificados.
A afluência recorde às urnas é prova eloquente da resiliência do regime democrático — Bolsonaro foi obrigado a reconhecer os resultados em silenciosa rendição, sem lamúrias ou novas falsidades sobre o sistema de votação que se esforçou para desacreditar nos últimos três anos. O fracasso político está no aumento contínuo das desigualdades e na perenização das fragilidades econômicas.
Em treze dos 27 estados há mais gente sobrevivendo dos programas sociais do governo do que trabalhadores remunerados no mercado formal. Abriram-se mais novas vagas de faxineiro do que para outros empregos com carteira assinada, segundo a estatística oficial sobre o período de doze meses até maio passado.
Nesse cenário, a legitimidade extraída das urnas será apenas o começo. O novo governo precisará reconquistá-la a cada dia, em negociações com o Congresso, na perspectiva de estabilizar a vida econômica dos eleitores pobres e de classe média. O eleitorado falou, e é prudente escutá-lo. O placar divisionista (48,4% x 43,2%) das urnas não deixa espaço para ilusões.
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Publicado em VEJA de 12 de outubro de 2022, edição nº 2810