No coração do caos
É na Amazônia que vai se decidir o êxito ou o fracasso do terceiro governo Lula
É terra de ninguém. São 50 milhões de hectares na Amazônia, uma área equivalente à Espanha, sem dono, registro ou posse definida.
Na teoria são terras públicas. Na vida real é símbolo de uma enorme confusão fundiária, com sobreposições de floresta e fazendas irregulares.
Ali, o desmatamento avança ao ritmo de 15 000 quilômetros quadrados por ano — dez vezes o tamanho da cidade de São Paulo.
A desordem aumenta, beira a anarquia no conjunto de nove estados: um terço da Amazônia Legal tem situação fundiária indefinida, constatou o Instituto Imazon depois de três décadas de pesquisas sobre a ocupação do solo na região.
É área do tamanho do México, ou equivalente ao dobro dos quatro estados da Região Sudeste (São Paulo, Minas, Rio e Espírito Santo) — confirmaram estudos conjuntos da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz e da Universidade Estadual de Campinas.
Esses recortes do mapa amazônico concentram cerca de 40% da atividade de desmatamento. Neles floresce a grilagem, a ocupação de terras públicas com uso de falsos títulos de propriedade.
É o núcleo de uma guerra ambiental motivada pela especulação imobiliária: 1 hectare com floresta em pé vale seis vezes menos do que 10 000 metros quadrados de terra nua, despida de árvores, adequada à pastagem.
O cenário de expansão desordenada da fronteira agrícola contrasta com o de regiões produtoras que concorrem com o Brasil no mercado global de alimentos. É o caso da Holanda, um dos maiores produtores mundiais e dono de território 300 vezes menor, onde inexistem conflitos.
O caos fundiário não é exclusividade da Amazônia, mas nessa fatia (59%) do mapa nacional, onde vivem treze de cada 100 brasileiros, está o maior estoque de terras sem regularização.
A omissão do Estado incentiva a disputa pelo domínio territorial. Nesse pedaço semi-habitado, com menos de seis pessoas por quilômetro quadrado, estão 23 dos municípios onde mais se mata. Grilagem de terras, desmatamento e narcotráfico se destacam entre as causas de sete em cada dez homicídios.
O cultivo de uma antiga e interessada desarrumação das instituições responsáveis pela regulação fundiária levou a situações como a do Pará, que possui uma área do tamanho da Inglaterra com mais de 100 000 imóveis rurais sobrepostos, em vários “andares” de titulação de propriedade.
O ambiente de conivência do Estado brasileiro com redes de negócios ilícitos permitiu aparições na selva como a do “fantasma” Carlos Medeiros — identidade (92.093-SSP/PA) e CPF (034.992.182-34), solteiro e fazendeiro de endereço incerto. Em nome dele foram falsificados, em cartórios, mais de 1 100 títulos de propriedade em toda a Amazônia, principalmente no Pará e no Amapá.
Medeiros nunca existiu, mas seus empreiteiros obtiveram facilidades governamentais, legislativas e judiciárias para se apropriar de terras numa extensão equivalente a 1% do território brasileiro.
Sua área grilada ultrapassou em tamanho a soma dos estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. Alguns enriqueceram nas estranhas transações com fazendas privadas inexistentes, mas demarcadas nos mapas de glebas públicas. Resta um enorme passivo, simbólico da incerteza jurídica que atualmente paira sobre parte das terras amazônicas.
O Estado que emitiu títulos falsos de propriedade para Medeiros, o “fantasma” da selva, é o mesmo que atormenta milhares de empreendedores reais com intermináveis processos de regularização, como é o caso da agricultora Maria José Rodrigues. Aos 83 anos, já atravessou metade da vida cultivando 272 hectares na margem da BR-429, em São Francisco do Guaporé, Rondônia. Foi “premiada” com várias vistorias para titulação da propriedade, vencidas porque a paralisia nos órgãos de controle ultrapassava o tempo de validade (dois anos) da fiscalização.
A Amazônia é um ativo ambiental atraente, mas será difícil consolidá-la como nova fronteira de negócios de um mundo em crise climática sem empenho governamental efetivo na partida — a solução do caos fundiário. “Sozinhos não teremos força nem dinheiro para cuidar como precisa ser cuidada”, disse Lula na reunião da ONU sobre o clima, no Egito, acrescentando: “Não podemos ficar prometendo e não cumprindo, porque senão seremos vítimas de nós mesmos”.
Boa lembrança. É na Amazônia, o coração do caos brasileiro, que vai se decidir o êxito ou o fracasso do terceiro governo Lula.
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Publicado em VEJA de 23 de novembro de 2022, edição nº 2816