
A ideia de anistiar envolvidos na tentativa de golpe de Estado nasceu e ganhou formato durante a conspiração para impedir a posse de Lula, nos dias seguintes à derrota eleitoral de Jair Bolsonaro, em 2022. O projeto foi protocolado na Câmara às 11h35 da quinta-feira, dia 24 de novembro, pelo deputado federal Vitor Hugo Almeida, do Partido Liberal. Recebeu o número 2 858.
Político do tipo anfíbio, major Vitor Hugo, como é conhecido, havia passado duas décadas em unidades de elite do Exército, como Forças Especiais, Paraquedistas e Infantaria de Selva. Era consultor legislativo de Defesa, quando Bolsonaro o ajudou a se eleger deputado pelo PSL de Goiás, com 31 000 votos. Na sequência, foi nomeado líder do governo na Câmara — posição incomum para estreantes e absolutamente singular na biografia de um “kid preto”, como são conhecidos os integrantes das Forças Especiais.
Ele ficou quatro anos na bancada do PSL. Saiu em 2022, a pedido de Bolsonaro, para disputar o governo de Goiás. Perdeu, mas multiplicou a votação — avançou para 516 000 votos. Ano passado voltou ao jogo como vereador mais votado (15 600) em Goiânia. O projeto de anistia foi a sua última “missão” legislativa em Brasília. O texto é propositadamente amplo e genérico, em coerência com o tumulto daquela segunda quinzena de novembro de 2022. Vitor Hugo o levou à Câmara apenas 48 horas depois que o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, em parceria com Bolsonaro, pediu a anulação parcial da eleição presidencial — evitou tratar da legislativa —, alegando “erros” nas urnas eletrônicas fabricadas antes de 2020.
Bolsonaro já havia mostrado a várias pessoas essa análise errada, comprada pelo PL com dinheiro público. Exibiu-a ao comandante da Aeronáutica, Baptista Júnior, na expectativa de convencê-lo a aderir ao movimento. O brigadeiro refutou, descartando o documento como rústico e ilógico.
Sem comprovar fraude, o PL foi multado em 22,9 milhões de reais por má-fé. Dois dias depois, o projeto de lei apareceu incluindo previsão de anistia para “condenações por litigância de má-fé”, além de anulação das multas eleitorais.
“Projeto de anistia prévia nasceu na conspiração para o golpe”
Naquela semana de novembro, enquanto Vitor Hugo dava curso à proposta de anistia ampla, geral e irrestrita, oficiais “kids pretos” se dividiam em grupos de tarefas em Brasília. Um deles pressionava generais que se opunham ao golpe. Bolsonaro delineava o plano num rascunho de decreto discutido com os comandantes — Exército e Aeronáutica rejeitaram, Marinha se declarou “à disposição”. Na sede do Partido Liberal, o candidato derrotado a vice de Bolsonaro, general aposentado Walter Braga Netto, organizava escrachos em redes sociais contra os “melancias” do Alto Comando (verdes por fora, vermelhos por dentro) e suas famílias.
Braga Netto nega, mas a Procuradoria o responsabiliza por outro grupo das Forças Especiais encarregado de planejar ações de guerrilha urbana. Quatro dias depois de Vitor Hugo registrar seu projeto, ainda de acordo com a investigação, o general discutiu alternativas para prisão e eventual assassinato dos recém-eleitos Lula e Geraldo Alckmin e do juiz Alexandre de Moraes, na época presidente do Tribunal Superior Eleitoral.
Na Câmara, o ex-líder do governo Bolsonaro fazia da proposta de anistia prévia algo mais do que um seguro contra incertezas da empreitada golpista. Usou-a, também, como instrumento de provocação do Congresso a um conflito institucional — “para retomar seu papel de defensor e protetor do povo brasileiro”, escreveu no projeto.
Vitor Hugo se manteve equidistante da conspiração, mas é improvável que não soubesse dos planos de Bolsonaro naquele final de novembro — uma evidência é o próprio projeto que antecipa perdão a crimes que ainda nem haviam sido cometidos. Desde então, a sua sugestão de lei virou ímã para a militância radical no Congresso.
José Medeiros, antigo policial rodoviário eleito deputado pelo PL de Mato Grosso, percebeu que Vitor Hugo havia estabelecido a anistia a partir do dia da eleição, 30 de outubro. Propôs mudar a referência para cinco meses antes, dia 1º de junho de 2022. Assim, endereçou uma salvaguarda a Bolsonaro, já acusado por espalhar histórias falsas sobre a eleição para uma plateia de diplomatas estrangeiros que havia reunido em julho. Condenado meses depois, está inelegível até 2030. O projeto de Medeiros foi incorporado ao original de Vitor Hugo com outros seis. O barulho em torno deles anima interesses em um conflito institucional. Em tese, não têm chance de sair do papel. Por uma razão: anistia prévia é impunidade antecipada.
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Publicado em VEJA de 17 de abril de 2025, edição nº 2940