Lula fez um bom discurso na ONU, semana passada. Talvez o melhor desde a posse, e igual a todos os anteriores. “O mundo está cada vez mais desigual”, disse ao recordar uma terça-feira de outono na Nova York de vinte anos atrás, quando estreou na tribuna das Nações Unidas.
Incisivo na leitura, estimulou a imaginação de quem ouvia: “Os dez maiores bilionários possuem mais riqueza que os 40% mais pobres da humanidade”. Seguiu com um apelo à paixão: “O destino de cada criança que nasce neste planeta parece traçado ainda no ventre de sua mãe. A parte do mundo em que vivem seus pais e a classe social à qual pertence sua família irão determinar se essa criança terá ou não oportunidades ao longo da vida”.
“Se irá fazer todas as refeições”, recitou, “ou se terá negado o direito de tomar café da manhã, almoçar e jantar diariamente. Se terá acesso à saúde, ou se irá sucumbir a doenças que já poderiam ter sido erradicadas. Se completará os estudos e conseguirá um emprego de qualidade, ou se fará parte da legião de desempregados, subempregados e desalentados que não para de crescer.”
Incitou rebeldia: “É preciso antes de tudo vencer a resignação, que nos faz aceitar tamanha injustiça como fenômeno natural”. E arrematou: “Para vencer a desigualdade, falta vontade política daqueles que governam o mundo”.
Vinte anos atrás, quando apresentou a sua “vontade política” na tribuna da ONU, ele governava para 175 milhões. Desde então, somaram-se 28 milhões de novos habitantes.
Detalhe relevante: nesse período, o Brasil deixou de ser um país de jovens — o grupo com mais de 30 anos de idade já é maioria (56,7%) na população. No ano passado, o IBGE contou mais gente acima de 60 anos (15,1% do total) do que na faixa de 15 a 24 anos (14,8%).
São 30 milhões de brasileiros e formam a ala mais jovem da população responsável pelo ímpeto produtivo na economia. Quatro em cada dez, no entanto, não estudam nem trabalham, constata a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico na mais nova pesquisa comparada sobre a situação educacional em 37 países.
“Lula quer liquidar dissonância entre ‘mercado’ e ‘rua’, mas não diz como”
Isso faz do Brasil, hoje, o vice-campeão mundial em proporção de jovens “nem-nem” (15 a 24 anos), sem perspectiva de acesso ao mercado de trabalho tanto por falta de formação educacional quanto pela escassez de emprego. Na lista da OCDE, só perde para a África do Sul.
É um desastre geracional, construído por décadas. Nele é possível identificar digitais de múltiplas lideranças políticas no período pós-ditadura, e entre essas sobressaem as de Lula e do Partido dos Trabalhadores, porque foram a referência de poder e de governo durante dois terços da vida dessa ala mais jovem da população, responsável pelo ímpeto produtivo na economia.
Completa-se um ciclo de quatro décadas de estagnação da economia. O empobrecimento está visível nas ruas e nas frias estatísticas — a renda por habitante neste ano é menor (4,1%) que a de dez anos atrás, concluem a Fundação Getulio Vargas e a Instituição Fiscal Independente, vinculada ao Senado.
Lula na ONU voltou a culpar o seu malvado favorito, “o neoliberalismo”, a quem atribui o legado da “massa de deserdados e excluídos”. Livrou-se da autocrítica e até desenhou uma receita para a superação desse ciclo de “agravamento da desigualdade econômica e política que hoje assola as democracias”. Para ele, “os governos precisam romper com a dissonância cada vez maior entre a ‘voz dos mercados’ e a ‘voz das ruas’ ”. Não disse como nem o que planeja fazer para estabelecer harmonia no capitalismo brasileiro.
Seu diagnóstico da crise é parcialmente correto. A fadiga política corrói duas dezenas de países latino-americanos, mostra a pesquisa anual da fundação chilena Latinobarómetro: sete em cada dez pessoas reafirmam a aposta na democracia como melhor forma de governo, mas registram insatisfação com o funcionamento.
Significa um alento para líderes cujas propostas de governo se baseiam na sedução autoritária. E o ambiente político regional favorece, porque metade dos países da América Latina tem ex-presidentes processados em tribunais, todos por corrupção em duas dezenas de casos. Além disso, está ocorrendo uma asfixia da representação parlamentar, já bastante fragmentada, com partidos cada vez mais distanciados dos interesses coletivos e, por consequência, raramente alcançando alguma aprovação significativa do eleitorado — têm no máximo 25% de respaldo, na média da região.
Lula tem pela frente mais 39 meses de mandato para exercitar a “vontade política” de vencer a desigualdade e a resignação “que nos faz aceitar tamanha injustiça como fenômeno natural”. É a sua terceira chance.
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Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2023, edição nº 2860