Lula foi ao Supremo Tribunal Federal acusar o Congresso de delinquência “ética e moral”. Alega que deputados e senadores atropelaram princípios constitucionais de “impessoalidade, moralidade e eficiência”, e provocaram “grave lesão ao interesse público” para “mero favorecimento de interesses privados” na aprovação da lei de privatização da Eletrobras, no ano passado.
É caso incomum de presidente da República apresentar num tribunal denunciando a Câmara e o Senado. A liderança nos embates costuma ser entregue à Advocacia-Geral da União, entre outras razões, para mitigar a exposição do governante aos riscos políticos em eventuais derrotas.
Dessa vez, Lula fez questão de personalizar as acusações ao Legislativo e assinou a ação judicial com três servidores da AGU. Incriminou deputados e senadores, de forma generalizada, sem apresentar provas e sem nomear pessoas ou empresas que teriam sido favorecidas pelos deputados e senadores nesse “abuso de poder e do direito de legislar” em prejuízo do Estado brasileiro. Além de imprudência, a ação sugere incoerência de um político que diz ter sido vítima de acusações genéricas, com sentença sem provas e prisão durante 580 dias por corrupção.
A lista de investidores particulares na privatização da Eletrobras é ampla. Começa pela 3G Radar, do trio de bilionários brasileiros Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira. Passa pela BlackRock, da dupla de bilionários americanos Larry Fink e Robert Kapito. E termina nos 363 000 trabalhadores que gastaram (16 000 reais na média) na compra de ações em leilão, usando dinheiro estacionado e mal remunerado do FGTS.
Lula acusa o Legislativo de ter feito na Eletrobras uma “expropriação do patrimônio público em favor de particulares”. Alega imposição de “graves restrições aos direitos políticos da União” na empresa, com riscos ao “elevado investimento público” e à “gestão adequada do sistema elétrico brasileiro”.
“Lula acusa o Congresso de conluio, mas não mostra provas”
A Eletrobras é a maior companhia de energia elétrica na América Latina. Tem 10 000 empregados e opera 22 usinas hidrelétricas conectadas a uma rede de 74 000 quilômetros de cabos de transmissão de eletricidade — estendidos, cobririam dezessete vezes a distância entre Oiapoque (Amapá) e Chuí (Rio Grande do Sul).
O Estado continua dono da maioria das ações ordinárias (42%) e das preferenciais (32%), mas as regras de privatização aprovadas pelo Congresso estabeleceram mecanismos de proteção corporativa aos sócios contra tentativas de compra da companhia. É uma estrutura societária e de gestão na qual não há um único controlador. Para adquirir o controle, qualquer investidor estatal ou privado precisará pagar aos demais acionistas três vezes o valor das ações.
Esse é o ponto central da acusação de Lula contra o Congresso. Para ele, a privatização resultou de um conluio de deputados e senadores com investidores privados para retirar o “poder político” e a capacidade do governo de influenciar os rumos da Eletrobras. Exemplifica com “graves restrições” às nomeações de novos dirigentes. Insinua riscos operacionais ao abastecimento energético nacional e acena com alta nos preços para os consumidores — muito antes da privatização a energia no Brasil já era uma das mais caras do mundo (195 dólares por MWh, na medição da Agência Internacional de Energia).
A Justiça dirá se Lula tem razão, ou não. São remotas suas chances de vitória no tribunal, até pelas consequências prováveis na estabilidade jurídica e econômica. Mas, na hipótese de vencer, a retomada do controle da Eletrobras custaria cerca de 100 bilhões de reais, dinheiro que o governo não tem. Politicamente, não avança um milímetro nas relações já difíceis com o Congresso, onde ainda não tem base suficiente sequer para votar um simples projeto de lei ordinária.
Em 2004, Lula (PT) retirou a Eletrobras da vitrine de estatais em oferta para privatização. Proclamou a defesa da soberania nacional, anunciou um grandioso projeto de conversão da Eletrobras em multinacional de energia e entregou a empresa ao domínio dos caciques do MDB. Ela não virou multinacional, mas as maracutaias no setor elétrico ganharam escala industrial em arranjos além-fronteiras, como mostram os inquéritos da Lava-Jato.
Lula quer mudar o papel do Estado na economia brasileira. É legítimo, mas tem um alto custo político. Errático, o governo já dispensa oposição.
Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA
Publicado em VEJA de 17 de maio de 2023, edição nº 2841