Aos olhos de gente comum, não passaria de um pedaço de pedra com marcas sinuosas, como mármore. Para geólogos, aquelas imagens do fundo do mar sugeriam outra coisa, o notável mistério de uma anomalia.
“Enigmático”, ouviu-se na sala da Petrobras, no Rio. Virou o apelido do bloco rochoso. Levou meses até ser decifrado o segredo de 110 milhões de anos na formação da costa brasileira, no trecho conhecido como Bacia de Santos. Imaginara-se uma formação arenítica, cimento natural, constatou-se uma composição de sais, confirmando a regra não escrita das geociências sobre a inexistência de verdades absolutas em território desconhecido.
A era pós-Enigmático mudou tudo dentro da maior empresa brasileira na virada do milênio. Pré-sal foi expressão de conveniência dos geólogos para descrever a novidade aos sócios estrangeiros da Petrobras, em abril de 2001: a camada de sais, com quilômetro e meio de espessura, “selava” depósitos de petróleo em águas ultraprofundas.
A Petrobras demorou mais quatro anos para usar a expressão “pré-sal” em comunicado sobre a abertura de uma “nova fronteira” de exploração.
Naquele agosto de 2005, Lula tentava superar a crise do mensalão, que quase custou-lhe o mandato. Os resultados promissores do descobrimento embalaram a campanha da reeleição. Viajou pelo país anunciando o pré-sal como “uma dádiva de Deus”; “uma das maiores descobertas de todos os tempos”; o “passaporte para o futuro do que temos de mais precioso — nossos filhos, nossos netos”.
Reeleito, sustentou a euforia até 2010, quando escolheu e elegeu a sucessora, Dilma Rousseff. A reprise do modelo de parceria com fornecedores da Petrobras no financiamento eleitoral deu no petrolão, com 580 dias de prisão em Curitiba.
Uma dúzia de anos depois, Lula está diante do inesperado na volta ao poder. Na Petrobras considera-se encerrado o ciclo de grandes descobertas de petróleo sob o pré-sal.
A empresa avança para o fim da linha com o esgotamento do potencial nas bacias de Campos e de Santos e áreas adjacentes. Conserva a perspectiva de aumentar a produção até o fim da década. Porém, sem novos achados significativos, prevê entrar numa etapa de estagnação e declínio a partir de 2030.
“Lula está diante do inesperado: a Petrobras precisa de um novo pré-sal”
A imagem mais evidente da aflição dominante na empresa e no governo está num ponto do Atlântico, distante 170 quilômetros da costa do Amapá. Ali, estão um navio-sonda e alguns barcos apoiados pelo trio de helicópteros que sustenta a ponte aérea com a base no Oiapoque, no extremo norte, fronteira com a Guiana Francesa.
A Petrobras tem pressa. Para ela, é vital encontrar novas reservas. Aposta seu futuro numa “nova fronteira” exploratória na margem equatorial brasileira — o nome deriva da localização na linha do Equador, que divide o mundo.
Desde dezembro, a Petrobras gasta quase 1 milhão de dólares por dia para manter equipamentos e pessoal imobilizados na pesquisa sobre o Poço Morpho (Bloco FZA-M-59) a mais de 2 800 metros de profundidade. Queima dinheiro no estacionamento sobre águas ultraprofundas porque se meteu num impasse político e ambiental de proporções amazônicas num trecho do Atlântico, onde a ciência possui mais dúvidas do que certezas sobre o funcionamento do ecossistema.
Acelerar — ou não — a procura por petróleo na foz do Rio Amazonas é uma decisão-chave do governo Lula.
Para a Petrobras, representa a chance de um novo “pré-sal”, mas só a broca diz a verdade na loteria geológica. A vizinha Guiana ganhou o grande prêmio em 2019, quando o petróleo começou a jorrar quatro dias antes do Natal no campo de Liza-I, a 120 quilômetros da costa, em frente à capital, Georgetown. Geólogos divergem sobre a extensão do lençol petrolífero até a costa brasileira. Muitos acham que entre Guiana e Suriname há um só bloco para exploração, uma concentração singular e já demarcada.
Na foz do Amazonas os riscos ambientais se multiplicam, atesta o Ibama e a Petrobras reconhece. O perigo está nas sequelas de um acidente com vazamento de petróleo, não somente para a fauna e flora em território nacional, mas também pela possibilidade realista de a eventual mancha de óleo invadir e contaminar a fronteira vizinha da França, na Guiana Francesa.
Não existe decisão fácil para Lula, nesse caso, porque empenhou seu governo num pacto mundial de preservação ambiental, focado na Amazônia e avalizado por Marina Silva, ministra do Meio Ambiente.
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Publicado em VEJA de 22 de março de 2023, edição nº 2833