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Colapso

País muda de rumo na guerra às drogas para conter os danos de um desastre

Por José Casado Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 29 jun 2024, 13h39 - Publicado em 28 jun 2024, 06h00

O Brasil mudou de rumo na guerra às drogas. Pela primeira vez, houve reconhecimento e ação institucional efetiva para conter os danos do desastre provocado pela política de combate aos usuários, que tem incentivado a lotação dos presídios, estimulado a corrupção policial e aumentado o lucro e o poder do crime organizado.

É notável que tenha acontecido pela simples lembrança da existência de uma Constituição a ser obedecida e que ela proíbe desvios institucionais como os legitimados na política nacional antidrogas, com a repressão estatal igualando usuários e traficantes.

O Supremo Tribunal Federal foi prudente ao decidir que não é crime o porte de maconha para consumo próprio. Seguiu a receita de cautela atribuída ao senador gaúcho Pinheiro Machado, influente personagem da República Velha. Ao ver multidão em protesto diante do Legislativo, no Rio, o então vice-presidente do Senado teria dito ao condutor de sua carruagem: “Siga em frente, mas nem tão devagar que pareça afronta nem tão depressa que pareça medo”.

Dezoito anos atrás, o Congresso aprovou uma legislação com medidas para prevenção do uso indevido de drogas, entre elas a maconha, prescrevendo atenção de saúde aos usuários. Também estabeleceu normas para repressão à produção e ao tráfico ilícito. Distinguiu o uso do tráfico. Porém, deixou indefinida a fronteira entre usuário e traficante.

Governo e Congresso atravessaram quase duas décadas sem se preocupar com a própria omissão. “É necessário uma decisão sobre isso”, reconheceu Lula, que sancionou a lei (nº 11.343) na quarta-feira 23 de agosto de 2006. Curiosamente, os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira, demonstraram mais preocupação com a preservação do “espaço” do Legislativo do que com a necessária e sensata correção de um histórico desvio institucional, responsável por levar o sistema judicial à beira do colapso.

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“País muda de rumo na guerra às drogas para conter os danos de um desastre”

Nos últimos dezoito anos, quadruplicou-se o número de pessoas encarceradas (644 300 no ano passado). E produziu-se um crescimento exponencial dos gastos com a segurança pública, a Justiça criminal e com a rede de 1 400 presídios — o custo já beira 1 bilhão de dólares anuais (5,5 bilhões de reais) para os contribuintes de São Paulo e do Rio. Em cada dez presos, seis são pardos, pretos e pobres da periferia, infor­ma o Conselho Nacional de Justiça. E 28% estão ali em regime “provisório”, à espera de uma decisão judicial que pode demorar quatro anos.

O resultado é um esplendor do fracasso. A matança aumentou (47 000 homicídios em doze meses). As máfias locais cresceram, beneficiadas com mão de obra a custo zero nas prisões, e avançam no vácuo do Estado em áreas vitais à logística de transporte até os portos atlânticos, como nas cidades à margem das nove calhas fluviais da Amazônia. Nenhum segmento da economia nacional foi mais dinâmico, na última década, do que as transnacionais verde-amarelas do crime organizado. Consolidaram posição de mercado em cinco continentes, mostra o mapa-múndi da ONU sobre o narcotráfico.

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A opção estatal pela guerra às drogas com foco nos pretos, pardos e pobres tem raízes nas teorias raciais infladas no choque de interesses do ciclo final da escravidão. Os arquivos do Ministério da Saúde guardam coletâneas de estudos produzidos para justificar o controle social via criminalização do uso da maconha. O “fumo de negro” foi associado à loucura e até a uma suposta revanche dos afrodescendentes, como propagou o médico e político sergipano José Rodrigues da Costa Dória.

A ênfase na repressão militarizada, a partir dos anos 80, moldou o aparato de segurança pública. A prioridade à caça aos usuários eliminou a investigação sobre as máfias e suas finanças (a experiência da força-tarefa paulista Gaeco contra o PCC é bem-sucedida porque inverteu essa lógica). Como efeito colateral, disseminou a espionagem em órgãos sem poder legal de investigação, estimulou a politização dos quartéis e a partidarização dos policiais militares. Fabricou excessos como uma “bancada da bala” no Congresso, agora esteio parlamentar do lobby dos jogos de azar. Ao lado, como advertem juízes e pesquisadores, florescem grupos políticos vinculados ao crime organizado.

A mensagem do Supremo ao Congresso foi prudente, direta e cristalina: uso de drogas não é crime, é problema de saúde pública, passível de sanções alternativas à prisão. Manipular essa decisão para induzir um conflito institucional é apostar na aceleração da liquefação política.

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Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 28 de junho de 2024, edição nº 2899

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