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Chuva de dinheiro

Dilúvio monetário no sertão é bom, se governo e empresas evitarem os danos

Por José Casado Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 10h03 - Publicado em 28 jul 2023, 06h00

A vida está mudando no leste de Mato Grosso do Sul, cerradão rareado de gente, mas com fartura de bois pastejando no capim ressecado do inverno, entre voçorocas sinalizadoras da degradação do solo. Num pedaço do chapadão arenoso, distante 300 quilômetros da capital, Campo Grande, residem 8 000 pessoas ladeadas por 416 000 cabeças de gado — há 52 ruminantes para cada humano, calcula o IBGE.

O reduto de solidões sertanejas ritmadas pela corrente do Sucuriú, afluente do rio Paraná, foi engolfado num dilúvio de dinheiro: 28 bilhões de reais de investimento privado até março de 2027. A enchente monetária mal começou, em 46 meses deve alcançar nível equivalente a mais de 3 milhões de reais por habitante.

Há século e meio, esse pedaço do sertão bruto inspirou Alfredo d’Escragnolle Taunay a descrever uma mulher deslumbrante: “Do seu rosto irradiava singela expressão de encantadora ingenuidade, realçada pela meiguice do olhar sereno que, a custo, parecia coar por entre os cílios sedosos a franjar-lhe as pálpebras, e compridos a ponto de projetarem sombras nas mimosas faces. Era o nariz fino, um bocadinho arqueado; a boca pequena, e o queixo admiravelmente torneado”.

Naquele 1872, o visconde de Taunay convulsionou o romance regionalista com a captura da paisagem, valores e hábitos da região no enredo de uma beleza agreste aprisionada num triângulo amoroso sob o patriarcalismo caipira. Sete décadas depois, em 1943, o inimaginável aconteceu: Inocência saltou das páginas do livro para a vida real. Virou município.

Desde então, quase nada de novo ocorreu na pequena cidade dominada por paulistas criadores de gado. Nem a disputa eleitoral do ano passado empolgou. Jair Bolsonaro venceu Lula, com 58,3% dos 4 087 votos válidos. A mansidão só foi interrompida por um boato rastilhado na prefeitura.

Foi quando Inocência perdeu a melancolia que baixa à terra com o cair da tarde, na descrição de Taunay. Mudou tudo com a perspectiva de um rápido e exponencial crescimento (150%) da população. De repente, o povoado de 8 000 descobriu que vai receber 12 000 novos habitantes em três anos, para a construção da nova indústria de celulose do grupo chileno Arauco. Sumiram os imóveis comerciais e residenciais para alugar. Terrenos de 40 000 reais são negociados a partir de 100 000.

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“Dilúvio monetário no sertão é bom, se governo e empresas evitarem os danos”

Mariene Garcia de Freitas, presidente da Associação Comercial, lembra ter percebido a mudança num dia seco de céu limpo, no ano passado, quando recebeu o aviso de que o aluguel da sua loja seria triplicado. Já trocou de endereço três vezes. Agora, planeja migrar do balcão de produtos para bovinos aos serviços para animais de estimação.

A escassez imobiliária animou Cristina Almeida, dona da revendedora Realize, a projetar um novo depósito de materiais de construção. Os dois pares de hotéis da cidade fecharam por contrato de longo prazo. Andreia de Paula, dona do restaurante Sabor da Terra, passou a servir setenta mesas três vezes ao dia. Resolveu trocar o fogão industrial de dez bocas por um de dezesseis bocas, e aumentar o salão.

Novos dilemas afloram. Dos mais prosaicos é o destino da estátua de boi branco na entrada da cidade e o título de “capital” do gado nelore. Isso porque dentro de cinco anos a paisagem estará tomada por uma floresta plantada com mais de uma dezena de milhões de eucaliptos, matéria-pri­ma para a fábrica de 2,5 milhões de toneladas de celulose fibra curta. Serão 21 árvores para cada boi no pasto e 500 por humano residente.

Inocência se atropela na viagem a um futuro de riqueza. No microcentro, por exemplo, nove de cada dez residências nem sequer têm coleta de esgotos e apenas seis possuem acesso à rede de água tratada. Ainda assim, as empresárias acham que a cidade teve a sorte adicional de um tempo mínimo para nova infraestrutura.

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Em contraste, citam o caso de Ribas do Rio Pardo, distante 230 quilômetros. Na pandemia, os 23 000 habitantes foram surpreendidos com a chegada de uma tropa de 8 000 operários para erguer a nova unidade de celulose da Suzano, um investimento de 14 bilhões de reais. Os aluguéis quadruplicaram, levando servidores ao êxodo e famílias de baixa renda a barracos de lona nas calçadas. “Não suportamos tamanho impacto”, rendeu-se o prefeito João Alfredo Danieze (PSOL) à repórter Elaine Oliveira, do jornal Capital News.

Inocência e Ribas mostram como a chuva de dinheiro é benigna, desde que governos e empresas se antecipem à contenção de danos na tempestade.

Os textos dos colunistas não refletem, necessariamente, a opinião de VEJA

Publicado em VEJA de 2 de agosto de 2023, edição nº 2852

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