No meio da agonia pandêmica, em 2020, apareceu um bálsamo nas livrarias — a primeira edição brasileira do livro As Leis Fundamentais da Estupidez Humana. Num ensaio enxuto e divertido, o historiador medievalista italiano Carlo Cipolla tateia um dos mistérios mais antigos e insondáveis da política: como e por que pessoas estúpidas conseguem alcançar posições de poder e relevância.
“Não é difícil”, escreveu Cipolla, “entender como o poder social, político e institucional aumenta o potencial que uma pessoa estúpida tem de causar danos. Mas ainda é preciso explicar e entender o que, essencialmente, torna uma pessoa estúpida perigosa para outras pessoas — ou seja, no que constitui o poder da estupidez. Pessoas essencialmente estúpidas são perigosas e prejudiciais porque pessoas racionais acham difícil imaginar e compreender o comportamento irracional.”
Acrescentou: “O fato de a atividade e os movimentos de uma criatura estúpida serem absolutamente instáveis e irracionais não apenas tornam a defesa problemática, mas também fazem com que qualquer contra-ataque seja extremamente difícil — como tentar atirar em um objeto capaz dos movimentos mais improváveis e inimagináveis”.
A sensação de impotência diante da mortandade espalhou angústia e produziu uma expectativa planetária sobre a produção de uma vacina contra o coronavírus. No Brasil, poucas coisas mataram tanto quanto as campanhas de desinformação sobre a Covid-19 disseminadas nas redes sociais. Com frequência diária, parte das informações ruins, notícias falsas e fake news foi promovida por Jair Bolsonaro.
Muita gente perdeu tempo na tentativa de entender por que ele fazia o que fazia na Presidência da República. Repudiava a ciência como premissa da política de saúde pública. Disseminava informações fraudadas e gastava dinheiro público com “pílulas milagrosas” de cloroquina e de ivermectina, para alegria dos fabricantes, cujos lucros subiram até 730%.
“Bolsonaro é caso exemplar de como um político pode causar danos”
Quando a vacina ficou disponível, passou a adiar a compra com argumentos insólitos: “A pressa não se justifica, porque você mexe com a vida das pessoas”. Efeito notável desse desgoverno foi a desconexão com a sociedade. Ironicamente, ampla maioria do eleitorado (60%) passou a dizer nas pesquisas que não confiava naquilo que dizia o presidente, candidato à reeleição, recusando-se a segui-lo na emergência sanitária.
Aconteceu, então, um raro caso de inépcia política passada em cartório. O Supremo Tribunal Federal certificou a incompetência do governo Bolsonaro em cumprir o dever constitucional de defender a segurança sanitária da população e liberou os governos estaduais para aquisição de imunizantes e vacinação descentralizada.
No ensaio sobre a estupidez, Cipolla diz acreditar que ela é um privilégio indiscriminado de todos os grupos humanos e distribuída de maneira uniforme de acordo com uma proporção constante. “De modo científico”, ele fundamenta: “A probabilidade de determinada pessoa ser estúpida independe de qualquer outra característica dessa pessoa”.
Os fatos costumam ser mais expressivos do que palavras. Foi assim com a expansão dos cemitérios brasileiros durante a etapa pandêmica de negacionismo da ciência. Repete-se na história dos atestados de vacinação fraudados que Bolsonaro usou para trapacear o governo dos Estados Unidos, driblando leis e normas de proteção sanitária da população americana.
O potencial de estupidez na política sempre supera expectativas. No Congresso, por exemplo, aumentou a confusão entre deputados sobre o que as empresas donas de plataformas de redes sociais dizem ser verdade ou mentira no projeto de lei para repressão das usinas de fraudes, informações falsas, fake news.
Na agonia pandêmica de 2020 o Senado aprovou o texto original com trinta artigos. A Câmara adicionou outros trinta em dois anos e meio de discussões. No dia da votação recebeu setenta novas emendas — seis por hora no expediente da terça-feira 2.
Os deputados querem garantir a própria impunidade e a de outros 50.000 “agentes políticos” sobre tudo que publicam nas redes sociais. Desenham um cercadinho VIP para a casta política no mundo virtual, isolando-a da vida real dos brasileiros. Tem-se novo caso de estudo à luz das “leis fundamentais” de Cipolla.
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Publicado em VEJA de 10 de maio de 2023, edição nº 2840