
Há uma ironia melancólica quando Lula celebra a democracia no Brasil e, ao mesmo tempo, brinda com anuência tácita a perpetuação da ditadura na Venezuela. É como se, intencionalmente, limitasse o alcance da mensagem democrática ao posto militar de Pacaraima, em Roraima. Somente a cegueira deliberada impediria enxergar além do marco da fronteira norte, no pedaço da Amazônia onde a cleptocracia venezuelana cultiva um histórico de prisões, tortura e assassinato de adversários políticos; patrocina inédito colapso socioeconômico na América do Sul em tempos de paz; e é responsável pelo êxodo de 7 milhões de pessoas, mais do que a emigração na Ucrânia desde a invasão da Rússia.
No início do governo, Lula presenteou o ditador Nicolás Maduro com uma recepção com pompa no Palácio do Planalto. O gesto tinha duplo objetivo. Um era romper o isolamento para induzi-lo ao diálogo sobre uma saída eleitoral democrática. Outro era demarcar a América do Sul como território de influência da sua administração na relação mais relevante para a diplomacia brasileira, com os Estados Unidos (“Eu acho que é bom eles entenderem que precisam da gente”, traduziu com peculiar humildade o conselheiro de Lula, Celso Amorim, em audiência no Senado pouco tempo depois).
Deu tudo errado. Maduro reagiu ao vislumbre do avanço eleitoral da oposição com ameaça de invasão armada da vizinha Guiana, transformada pela americana ExxonMobil numa das maiores províncias petrolíferas do planeta. O governo Lula se mobilizou, mas decisivo mesmo foi o revide imediato, e nada sutil, de Washington: os EUA converteram a fatia guianense da Amazônia numa espécie de protetorado, incluindo um projeto de base militar.
Na sequência, Maduro insinuou um “banho de sangue” doméstico em caso de derrota na disputa presidencial. Lula rejeitava contatos com a oposição, liderada pela candidata liberal, María Corina Machado, e tentou atenuar a intimidação: “A Venezuela tem mais eleições do que o Brasil”, disse à Rádio Gaúcha, desprezando a conhecida sequência de fraudes eleitorais. Apresentou curiosa justificativa: “O conceito de democracia é relativo para você e para mim. Gosto de democracia porque a democracia me fez chegar à Presidência pela terceira vez”.
“Fracasso de Lula com Maduro abriu espaço para Trump na América do Sul”
São antigos os laços de Lula com a cleptocracia venezuelana. No início do século, até fez comício para reeleição do coronel Hugo Chávez, que governou por catorze anos, até a sua morte, em 2013. Mobilizou empresas públicas e privadas, o Partido dos Trabalhadores e uma equipe de marketing para ajudar Maduro a se eleger como sucessor.
O principal financiador brasileiro de campanhas na Venezuela foi a empreiteira Odebrecht (atual Novonor). Em contrapartida, conseguiu quase duas dezenas de bilhões de dólares em contratos com o regime de Chávez-Maduro, pagando “pedágios” de 20%, na média, com lucros recordes de até 500 milhões de dólares num único ano. As transações venezuelanas até hoje compõem o capítulo mais obscuro da rede continental de corrupção construída pela empreiteira brasileira.
Relações políticas fluidas com Chávez e Maduro foram importantes, por exemplo, para expansão das exportações de serviços nos dois primeiros governos de Lula. Foi o caso de duas linhas de metrô, com financiamento subsidiado do Brasil via BNDES, combinadas em maio de 2009 entre Lula e Chávez com o empreiteiro Emílio Odebrecht, em Salvador.
Dois anos depois, os atrasos de pagamento do governo venezuelano com a empreiteira beiravam 1 bilhão de dólares. Em junho de 2011, Lula desembarcou em Caracas. Era um ex-presidente em turnê no exterior a convite de empresas, entre elas a Odebrecht. Chávez o recebeu na companhia do empresário Emílio. A cobrança da dívida bilionária foi “quase como um tema de negociação diplomática”, na definição de um embaixador ao Itamaraty, ao confirmar a liquidação do débito. Não se conhece a versão venezuelana, sabe-se que Chávez e Maduro recorreram à ajuda de Cuba para organizar e preservar arquivos sobre suas transações. A dívida pendente com o Brasil supera 1,7 bilhão de dólares.
A cleptocracia da Venezuela virou um estorvo na América do Sul. O roubo nas urnas e as violações aos direitos humanos redundaram no veto público de EUA, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Peru e União Europeia à perpetuação da ditadura. Lula perdeu mais do que a aposta na “conversão” de Maduro. Fragilizou-se na liderança regional e abriu espaço para concentração de expectativas em Donald Trump, cuja característica é dividir para governar.
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Publicado em VEJA de 10 de janeiro de 2025, edição nº 2926