Acabou o dinheiro
Governo, Congresso e Judiciário seguem perdidos sobre como administrar o Estado
Lula está inconformado com a independência dos deputados e senadores, mas não sabe o que fazer, não encontra os meios ou apenas não quer mudar o que está aí. No impasse, segue na rendição à realidade de uma Presidência institucionalmente debilitada em duas décadas de sucessivas crises — as do mensalão, do petrolão, do impeachment e da tragicomédia bolsonarista, entre outras.
Vive a nostalgia dos velhos tempos, os primeiros deste século, quando era tudo diferente no Palácio do Planalto. O governo tinha força para insinuar — com frequência, deixava explícito — o elevado custo da resistência aos desejos do presidente: verbas federais seriam redirecionadas aos adversários do parlamentar rebelde na própria base eleitoral. Deputados e senadores faziam fila nos corredores da Casa Civil e dos ministérios, oferecendo votos em plenário em troca da “liberação” do financiamento de projetos previstos nas emendas ao Orçamento.
Foram anos dourados para Lula, eleito e reeleito com mais de 60% dos votos à Presidência, então reconhecida pelos poderes quase imperiais. Governou embalado pelo vento da bonança econômica, amparada num ciclo de alta nos preços das mercadorias exportadas, com legitimidade renovada em sucessivos recordes de popularidade (até 67% de aprovação).
Passaram-se duas décadas. Lula saiu da prisão, livrou-se dos processos do petrolão e reconquistou a Presidência por margem estreita (1,8 ponto percentual). Voltou ao Planalto com a antiga receita de governar sem maioria congressual. Dispensou a ideia de coalizão, esboçada na campanha, e retomou a gerência do varejo de alianças ocasionais para votações, com o uso de cargos e verbas para emendas parlamentares.
Fez uma escolha política. Acabou surpreendido. O poder quase imperial do presidente havia sido dissipado na poeira da História. Ele tropeçou num Congresso mais autônomo, onde a maioria já não depende do governo para distribuir nos seus distritos eleitorais. Hoje, tudo o que os ministérios têm para oferecer aos parlamentares é um “cardápio de emendas”, o menu oficial das ambições governamentais à espera de financiamento. Agora, são os ministros que dependem dos deputados e senadores.
“Governo, Congresso e Judiciário seguem perdidos sobre como administrar o Estado”
Lula se repete nas queixas. “Hoje você tem metade do Orçamento na mão do Congresso, não tem nenhum país do mundo que tenha essas condições”, disse na semana passada às repórteres Rosane de Oliveira, Andressa Xavier e Giane Guerra. “O Congresso tomou conta. Tem um ditado que diz o seguinte: as pessoas têm facilidade de se acostumar com coisas boas. Então, se o cidadão tem o direito de ter uma emenda de 30 milhões, 40 milhões, 50 milhões de reais, e se diz que presidente da comissão (do Legislativo) tem direito a 300 milhões, 400 milhões de reais, isso pode tornar a pessoa viciada e não querer abrir mão.”
A Constituição manda o Congresso fazer o orçamento e o governo executá-lo. Lula acha que dinheiro na mão de deputado e senador é vendaval. E tem razão, em parte. Nas condições atuais, que aceitou no período pós-eleição, é um mistério quem envia, quem recebe e qual o destino de alguns bilhões consumidos na rubrica emenda parlamentar. Não significa que era melhor e mais transparente quando o poder de decisão estava concentrado no governo. Dinheiro é coisa perigosa, dizia Miguel Arraes, lenda da política nordestina. Acrescentava, talvez em contrição: “Nas mãos de um homem público, é sempre um desastre”.
Agora, acabou a grana. Lula se mostra impaciente com a inércia do próprio governo e, sobretudo, com a perspectiva de atravessar os últimos dois anos de mandato na gerência de um caixa esvaziado, insuficiente para bancar os investimentos que julga essenciais à campanha eleitoral de 2026. Cerca de 96% do Orçamento federal estão vinculados ao pagamento de despesas básicas com previdência, saúde, educação, programas assistenciais, dívida e funcionalismo público. Sobram apenas 4% dos recursos para livre gasto, incluídos investimentos públicos. Nem Lula nem o Congresso e o Judiciário se mostram dispostos a mudar isso aí, revisando a vinculação (96%) das receitas.
Preferem continuar entretidos na disputa de poder sobre a fatia menor do Orçamento, num país onde o peso do Estado na economia já supera 34% do produto interno bruto. Reuniões como a patrocinada pelo Supremo transmitem ao público a mensagem de que não sabem o que fazer. Na vida real sabem, mas não querem. Se querem, não demonstram coragem de fazer. Governo, Congresso e Judiciário seguem perdidos sobre como administrar o Estado brasileiro no século XXI.
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Publicado em VEJA de 23 de agosto de 2024, edição nº 2907