A liquefação
Nunca houve uma mulher como Nelma no Palácio Guanabara, símbolo do país sem rumo
Atendia no 21-9972-33315. Era para poucos, e sempre a negócios. Dependendo do volume de dinheiro em jogo, levava os clientes-empresários para uma rodada de prazeres fugazes com vinho e charutos na varanda aberta que interliga as três alas do palácio, plantado na Zona Sul do Rio. Nelma era o codinome por trás do número telefônico. Sua vida dupla incluía rota de fuga do Palácio Guanabara para o Aeroporto do Galeão, para voos de doze horas rumo ao desejo de sempre — jantar em Paris. Foi a pessoa mais influente no estado do Rio de Janeiro, nos anos 2007 a 2014, com poder de fato sobre as decisões do governo estadual.
Raros, no entanto, talvez uma dezena, eram capazes de reconhecê-la na versão oficial conduzindo convidados pela escadaria de mármore Carrara que desnuda o cenário do terraço ao redor da ala social. Entre Nelma e eles havia mais do que o sutil perfume da cumplicidade. Eram relacionamentos de “compromissos”, sinônimo de propinas pagas por empresas privadas em troca de favorecimentos nos contratos com o estado do Rio.
Empreiteiros disputavam obras, Nelma tomava uma fatia milionária de cada empreendimento. Arbitrava 1% para a Andrade Gutierrez. Impunha 5% à Odebrecht. Ninguém recusava, embutia o suborno no preço final. A única preocupação era com a harmonia entre os pagamentos e o fluxo de recebimento da empresa líder (60% do contrato) ou da liderada (40%) no consórcio de construção.
Nelma embolsou 35 milhões de reais (valor atualizado pelo IPCA/IBGE) por contratos de obras da Odebrecht numa rodovia ligando cidades da Baixada Fluminense e nas três maiores favelas do Rio. Nos registros do departamento de propinas da empreiteira estava encoberta por outro codinome: “Proximus”.
Da estrada de 145 quilômetros, ao custo de 3,1 bilhões de reais, metade só foi concluída no mês passado, mais de uma década depois. Nas favelas pouco restou de quase nada feito. O governo projetava teleféricos quando os moradores precisavam de água limpa e esgotos tratados. Foi assim na Rocinha, aglomerado de vielas estreitas com alta incidência de doenças infecciosas, como a tuberculose.
“Nunca houve uma mulher como Nelma no palácio, símbolo do país sem rumo”
O teleférico não saiu do papel, mas custou 2,6 bilhões de reais aos cofres públicos. Obras de saneamento básico nem foram cogitadas — o Rio foi o estado onde a tuberculose mais matou no ano passado, com 805 vítimas e aumento de 5% nos casos registrados em relação a 2020. Os negócios só deixaram de fluir na fumaça de charutos quando procuradores da Lava-Jato começaram a vasculhar as contas do governo e das empreiteiras. Na mais fina das redes, a das comunicações entre suspeitos, reluziu o telefone 21-9972-33315, com 507 chamadas e incontáveis mensagens criptografadas.
O enigma começou a ser desvendado no Sittel, acrônimo de Sistema de Investigação de Registros Telefônicos e Telemáticos, mantido pela Procuradoria-Geral da República, em Brasília. Ele permite receber, processar e cruzar registros telefônicos e telemáticos extraídos diretamente dos arquivos das empresas de telecomunicações de todo o país.
Alguns ardis seriam perfeitos se contidos num romance, sem os embaraços dos fatos. O Sittel revelou a dona da linha telefônica. Na sequência, executivos da Andrade Gutierrez e da Odebrecht contaram tudo.
Nunca houve uma mulher como Nelma no Palácio Guanabara. Era o governador Sérgio Cabral travestido na clandestinidade. Ele subtraiu a identidade de uma respeitável senhora, sua empregada doméstica, comprou o telefone e utilizou-o para tramar roubalheiras bilionárias com empreiteiras. Na semana passada foi condenado a indenizar a vítima e, também, a mais dezessete anos por corrupção em obras como o PAC das Favelas e o Arco Metropolitano, com uso intensivo do telefone 21-9972-33315.
Preso há seis anos, suas sentenças de reclusão somam 425 anos — tempo pouco menor que o da existência de São Sebastião do Rio de Janeiro, fundada por Estácio de Sá, em março de 1565. Cabral é personagem simbólico da liquefação política, da apropriação do Estado. Ela ficou exposta na Lava-Jato e derivou em 2018 na eleição “da raiva”, da responsabilização no voto. A próxima, em outubro, vem sendo interpretada como a “da transição”. É possível. Nas pesquisas transparece um clima de ansiedade com o resgate de um país prisioneiro da estagnação.
Em contraste, no embate entre os principais candidatos ainda prevalece a escassez de ideias consistentes, compatíveis com um mundo em mudanças tectônicas. Essa discrepância pode custar caro ao futuro governo, não importa o eleito.
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Publicado em VEJA de 15 de junho de 2022, edição nº 2793