A hora e a vez da Baía de Guanabara… (vai chegar?)
Para fazer no Rio o que foi feito no Tâmisa, necessitaremos de vontade política de todos os níveis da administração, e de um sério projeto de despoluição
O bem sucedido processo de despoluição atualmente operado no Rio Sena, por autoridades ambientais francesas – como compromisso do projeto da organização dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 – merece ser aplaudido de pé, sobretudo, pela façanha que representa. Contudo, o sucesso francês nos provoca uma sensação de desconforto, especialmente quando nos recordamos da promessa não cumprida de limpeza da nossa Baía de Guanabara, firmada ainda por ocasião dos Jogos Olímpicos do Rio
Lembrando que prometemos despoluir 80% da Baía de Guanabara, quando da apresentação da candidatura à sede do evento…
Em evento relativamente recente, ocorrido na Baía de Guanabara, nos deparamos com uma inesperada colisão de um navio abandonado com a Ponte Rio-Niterói. O acidente, que poderia ter tido proporções e prejuízos inimagináveis, nos trouxe ao conhecimento uma situação no mínimo inusitada: a atuação de três instituições públicas, que se eximiram (justificadamente) de responsabilidades sobre a situação, a saber, Ibama, Marinha do Brasil e INEA – Instituto Estadual do Ambiente.
O caso, à princípio, nos mostra que a sobreposição de competências e atribuições de diversos órgãos de diferentes esferas acabam, em algumas situações, por deixar brechas temerárias, principalmente do ponto de vista da responsabilização por danos e prejuízos, especialmente os ambientais. Por conta desse incidente, tomamos também conhecimento que há, atualmente, incríveis 250 navios abandonados na nossa Baía da Guanabara.
E ali, exatamente na Baía de Guanabara, há uma em especial situação que merece ser discutida com mais profundidade. A Lei Complementar 140 de 2011, que dispõe sobre as competências ambientais, fixou normas para a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, repartindo as atribuições administrativas e definindo as competências licenciatórias de cada ente federativo. Dessa divisão de competências, a Baía de Guanabara restou considerada como “águas interiores” e, para fins de licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos em seu corpo d’água, a missão pertence ao órgão ambiental estadual (INEA).
Acontece que a Baía de Guanabara é um braço de mar, do Oceano Atlântico, além de símbolo histórico do Rio e do próprio país, possui uma área aproximada de 400 quilômetros quadrados, banha duas ex-capitais, cidades importantes como Rio de Janeiro e Niterói, guarda inúmeras bases navais, inclusive de submarinos, diversas unidades do Exército, estaleiros que constroem e reparam embarcações, um dos portos mais estratégicos do país (onde atracam dezenas de transatlânticos de passageiros), um dos nossos principais terminais petrolíferos, dois aeroportos, Tom Jobim e Santos Dumont, sendo um deles internacional e o outro um dos mais movimentados, a gigantesca Ponte Rio-Niterói, o campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro…
Isso sem falar nas dezenas de rios que nela desembocam, na riquíssima fauna aquática que (ainda) abriga, tanto de aves e peixes, como de cetáceos, e as inúmeras colônias de pecadores que nela funcionam há muitas dezenas de anos. A Baía de Guanabara guarda, desta feita, importância estratégica para inúmeros interesses federais.
Pois bem, o interesse federal é claro e manifesto em cada quadrante da nossa Baía de Guanabara. E, do ponto de vista penal, segue a baía, obviamente, como águas federais. Isso é, os delitos ambientais ali cometidos, de poluição hídrica, passando por vazamentos de óleo, até a pesca ilegal, são todos de atribuição investigativa da Polícia Federal, e de competência julgadora da Justiça Federal.
E aqui não vai uma crítica à figura da repartição de competências de licenciamento ambiental entre os entes federativos, medida salutar, que, grosso modo, desafoga o Ibama, concedendo responsabilidades aos estados e municípios, até porque a preservação do meio ambiente é dever de todas as esferas administrativas. Mas há algumas leis que, para resolver um problema aqui, acaba criando outro acolá…
Afinal, o que poderia ser revisto, em caráter extraordinário, é a abordagem da Baía de Guanabara como “águas interiores”, pois nela, sem sombras de dúvidas, bens e serviços federais preponderam. Impactos causados por poluição com combustíveis e outros derivados de petróleo (da operação das várias empresas de óleo e gás que ali funcionam ou de navios ali deliberadamente abandonados) serão invariavelmente tipificados como crimes ambientais federais. Não há muita lógica que o órgão ambiental estadual licencie atividades que poderão gerar transgressões penais que por sua vez serão processadas criminalmente pelo aparato persecutório federal. Há aí uma aparente desconexão da cadeia de responsabilização.
Enfim, é chegada a hora de fazermos na Baía de Guanabara o que os ingleses fizeram com o Rio Tâmisa, que poluído e considerado morto, foi depositário de dejetos humanos e industriais por séculos e acabou totalmente recuperado. Para tal, necessitaremos de vontade política de todos os níveis da administração, e de um longo e sério projeto de despoluição, que certamente implicará na aplicação de normas e entendimentos mais restritivos, no tocante a sustentabilidade das atividades do seu entorno. Em suma, não se trata apenas de limpar a sujeira já existente na Baía, mas, sobretudo, interromper e evitar atividades que ofereçam riscos de sua degradação.
Por derradeiro, muito oportuna a realização da exposição “Futuros da Baía de Guanabara: inovação e democracia climática”, de iniciativa do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, que ocorre de 21 de março a 14 de maio do corrente, na Casa da Ciência – Centro Cultural de Ciência e Tecnologia da UFRJ, no bairro de Botafogo, zona sul do Rio.