“Wanderlust”: até de comum acordo, o adultério é um rolo
Ótima no papel da mulher que se desinteressou do marido, Toni Collette enfrenta concorrência seriíssima do resto do elenco nesta série linda da Netflix
Depois da performance virtuosística de Toni Collette em Hereditário, vários leitores me perguntaram o que eu acho dela. A resposta é que tenho Toni em tão alta conta que, por causa dela, me senti na obrigação de assistir a Wanderlust, uma nova série da Netflix cuja premissa mais me desinteressou do que me intrigou: casal de meia-idade com três filhos já crescidos decide experimentar o casamento aberto. Mas vá lá; há 24 anos, desde O Casamento de Muriel, Toni vem fazendo por merecer o tempo do espectador. Pois Joy, psicoterapeuta, e Alan, professor, (Toni e Steven Mackintosh) se amam e se dão muito bem, mas o desejo sumiu da convivência conjugal. Em particular nos últimos meses, desde que Joy sofreu um acidente (estava na bicicleta, distraiu-se num cruzamento e foi pega por um carro) e se quebrou um bocado. Ela já está quase recuperada, mas olha para Alan e não tem a menor vontade de transar com ele. Na hidroginástica, porém, um sujeito flerta um pouco com ela e Joy se interessa. Interessa-se muito, aliás. Muito mesmo. E, por acaso, nesses mesmos dias Alan ajuda uma colega da escola com a bateria do carro e, conversa vai conversa vem, pronto: rola. O que não é grande surpresa, porque a colega, Claire (Zawe Ashton), é uma fofa, e eles têm mil afinidades.
De noite, quando um confessa a traição para o outro, Joy tem a ideia de desarmar a crise propondo que, já que eles realmente querem continuar casados mas não estão se entendendo na cama, que conduzam seus respectivos casos. Parte do trato é a honestidade total: nada de encontros furtivos nem dissimulações. A outra parte é que as infidelidades têm de se resumir a sexo e diversão – nada de deixar que sentimentos interfiram com o arranjo. Lógico que, em dois tempos, sentimentos variados e intensos estarão em jogo.
Meu desânimo inicial era pura bobagem. Vi os seis episódios de quase uma hora cada em duas noites, cheia de culpa, porque já devia estar dormindo havia muito tempo – mas não conseguia parar. No lugar da visão farsesca ou superficialmente moderninha com que Wanderlust parecia acenar, encontrei uma investigação sofrida, honesta, cheia de humor mas também de tristeza, arrependimento e dramas que vão permanecer sem solução, das razões pelas quais Joy está na situação em que está. O quinto episódio é magnífico: a sessão semanal de Joy com sua própria terapeuta transcorre durante os 50 minutos regulamentares, de forma ininterrupta, mesmo quando outras cenas se intrometem na edição (são as coisas de que Joy está lembrando enquanto fala). Sophie Okonedo, magistral no papel da terapeuta, delicadamente arranca o coração de Joy do peito, corta-o ao meio para mostrar a ela o que está ali dentro e então o põe de volta no lugar com uma sutura que, é claro, só pode ser provisória.
Além do roteiro excelente, então, essa foi a grande surpresa de Wanderlust (que, em tradução bem livre, significa “desejo de pôr o pé na estrada”): por melhor que Toni Collette esteja, é seriíssima a concorrência que ela enfrenta da encantadora Zawe Ashton, da extraordinária Sophie Okonedo, do adorável Joe Hurst, que faz o filho de Joy, de Celeste Dring e Emma D’Arcy, que fazem suas filhas, de Royce Pierreson, que interpreta o paciente Jason – e de Steven Mackintosh, como o marido de Joy. Nas séries inglesas, onde ele é presença muito frequente, Mackintosh quase sempre faz o sujeito fraco, ou o covarde, o cara que dá para trás (por exemplo, em Luther). Aqui, ele brilha como Alan, tão perplexo, tão amoroso e tão honesto. Wanderlust, enfim, me deixou no chão.