“The Crown 2”: Como melhorar muito o que já era excelente
Em uma segunda temporada virtuosística, a série acua Elizabeth II contra os estremecimentos da história e da sua vida pessoal, e tira dela todas as certezas
Philip, Duque de Edimburgo (Matt Smith), é coroado príncipe – e raras vezes uma conquista tão desejada há de se ter provado tão decepcionante. A cerimônia mal merece esse nome: a parte indispensável da nobreza observa, com olhar constrangido ou desaprovador, Elizabeth II (Claire Foy) conferir o título ao homem com quem está casada já há dez anos. Quando, com a coroa afinal sobre a cabeça, ele se põe ao lado da rainha, o silêncio da plateia é de uma loquacidade insuportável: ele diz que, já que Philip obteve a honraria por motivos tão reprováveis, é com desdém que ela lhe será entregue. Mas o que se intui da cena é que ninguém se feriu mais fundo nessa batalha do que a própria rainha. Acuada pela insatisfação do marido com os termos de um casamento em que ela é a chefe de tudo e de todos, Elizabeth II enfrentou humilhações sem poder sequer admitir que as estava enfrentando. Foi apanhada de surpresa pelo desinteresse do homem por quem é apaixonada, e só o que lhe restou foi salvaguardar as aparências. Sua solidão vai se aprofundar muito ainda, e chegar ao doloroso. Para ela: para o espectador da segunda temporada de The Crown, desde sexta-feira 8 disponível na íntegra na Netflix, as turbulências de Elizabeth e seus familiares são um deleite. Não apenas pelo prazer de espiar a intimidade dos Windsor, mas pelo virtuosismo com que o criador e roteirista da série, o inglês Peter Morgan, faz a escrita, a realização, a direção e a interpretação confluírem de forma a atingir sempre o máximo de significado e informação, e ainda de entretenimento.
The Crown é, apropriadamente, a jóia da coroa da Netflix e o xodó do diretor de conteúdo da plataforma, o americano Ted Sarandos, que até aqui já autorizou um investimento de 130 milhões de dólares na produção – um valor colossal para uma série. O dinheiro não poderia estar em mãos mais responsáveis que as de Peter Morgan e do produtor executivo Stephen Daldry, o diretor do sucesso Billy Elliot, que assina a direção de alguns dos dez episódios. Se a primeira temporada se ocupava sobretudo dos passos incertos do aprendizado da jovem Elizabeth II e de sua acomodação ao peso da coroa, esta segunda temporada alarga o escopo de maneira ambiciosíssima. Claire Foy, em um desempenho ainda mais notável que o da leva inicial (e a ser substituída por Olivia Colman, dez anos mais velha, na próxima temporada), é a pele na qual se sentem os terremotos da virada dos anos 50 para os 60. Da crise do Canal de Suez (um fiasco que roubou à Inglaterra o que lhe sobrara de protagonismo global) à ascensão, no firmamento político, das estrelas John e Jackie Kennedy; do forte sentimento antielitista que tomou conta da nação aos primeiros sintomas da liberação sexual; da popularidade crescente do evangelismo à cultura da invasão de privacidade, Morgan passeia pelo período com desenvoltura assombrosa.
Tal é o domínio que Morgan tem das ferramentas da dramaturgia e da história que está narrando que se chega ao final das dez horas de encenação com a sensação de que elas foram tecidas com um fio contínuo (o qual, em certas passagens, ele une a eventos muito posteriores, próximos daqueles contemplados no seu roteiro de A Rainha, como o assédio dos paparazzi à princesa Diana). A qualidade da pesquisa garante que, mesmo quando a série recorre a especulações sobre a história – quem poderia saber com certeza o que a rainha e o pregador americano Billy Graham (Paul Sparks) conversaram a portas fechadas, ou como o fotógrafo Antony Armstrong-Jones (Matthew Goode) seduziu a princesa Margaret (Vanessa Kirby)? –, elas soem íntegras. Faz sentido que Elizabeth II tenha lamentado a Billy Graham a solidão espiritual de uma monarca que não tem ninguém acima dela além de Deus. Ou que Margaret, party-girl por excelência e uma segunda filha contrariada, tenha comprado tal e qual o atrevimento de Armstrong-Jones, sem entender o componente patético das suas afrontas. Jackie Kennedy (Jodi Balfour), sabe-se hoje, andava já muito infeliz em junho de 1961, quando ela e o presidente John Kennedy (Michael C. Hall) visitaram o Palácio de Buckingham. Mas Elizabeth não o sabia, e é provável que, mergulhada na sua própria crise conjugal e numa meia-idade precoce, tenha doído a ela comparar-se com a deslumbrante primeira-dama – episódio que desembocou numa petulante e deliciosa visita da rainha a Gana. Essa visita está nos autos, assim como o discurso desastroso que Elizabeth fez numa fábrica da Jaguar e que deflagrou uma crise constitucional liderada por um aristocrata (o maravilhoso John Heffernan).
Em nenhum caso a disposição de Morgan para compreender seus personagens se manifesta com tanta compaixão quanto para com Philip, o consorte célebre pela impaciência, pela falta de tato e pelas comichões da infidelidade. Philip submete Elizabeth a uma cota abusiva de desmoralizações nesta segunda temporada – e então, no nono episódio, quando o duque de Edimburgo bate o pé e manda seu tímido primogênito para uma escola na Escócia que o príncipe Charles depois descreveria como “o inferno na terra”, The Crown dá uma meia-volta para mostrar o menino que o próprio Philip foi. É devastador, e comove tanto no que contém de redenção quanto no que sugere de uma infelicidade transmitida de geração para geração. Mas isso é assunto para as próximas temporadas – e assunto é o que os irrequietos Windsor nunca deixam de proporcionar.
Isabela Boscov Publicado originalmente na edição 2560 da revista VEJA Republicado sob autorização de Abril Comunicações S.A © Abril Comunicações S.A., 2017 |