Black Friday: Revista em casa a partir de 8,90/semana
Imagem Blog

Isabela Boscov

Por Coluna Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Está sendo lançado, saiu faz tempo? É clássico, é curiosidade? Tanto faz: se passa em alguma tela, está valendo comentar. Este conteúdo é exclusivo para assinantes.
Continua após publicidade

Terceira temporada de ‘The Crown’: no reino da discórdia

Série fala muito de perto à Inglaterra politicamente tumultuada de hoje — e passa em um difícil teste: a troca completa de elenco

Por Isabela Boscov Atualizado em 4 jun 2024, 15h08 - Publicado em 15 nov 2019, 11h18

À mesa do café da manhã, Philip, duque de Edimburgo e consorte da rainha, olha os jornais com desgosto: é difícil compreender como a Inglaterra, outrora tão próspera, agora produz tal quantidade de más notícias, comenta Philip com a mulher. Está-se no último episódio desta terceira temporada de The Crown, que estreia na Netflix neste domingo 17 — e, desde o início dela, as más notícias têm sido uma constante na vida da nação e nos corredores do Palácio de Buckingham. Mas agora a sensação é de saturação: nem nos anos terríveis da II Guerra Mundial o horizonte parecia tão sombrio, porque então ao menos prevalecia o senso de solidariedade entre os ingleses. Agora, ao contrário, a desunião é a ordem do dia. Elizabeth II, o fino reboco com que a Inglaterra disfarça suas trincas e fissuras, sente-­se insuficiente para remendar as rupturas — que começam em sua própria família, imersa em um estado persistente de discórdia.

Peter Morgan, o criador e roteirista de The Crown, não precisou inventar nem acomodar fatos para que uma descrição do período abarcado por esta nova leva de episódios, de 1964 a 1977, coincida em suas linhas gerais com um retrato da Inglaterra dos dias de hoje. Estão ali, sem tirar nem pôr, o descontentamento social, a polarização política e as perspectivas econômicas lúgubres, assim como as tribulações da dinastia reinante. A partir daí, Morgan organiza um ataque em três flancos: primeiro, faz drama de grande estirpe, envolvente e empolgante; recria alguns eventos marcantes da história recente do Reino Unido e recupera outros menos conhecidos; e, finalmente, deixa uma consideração — a de que essa é uma nação que já resistiu a um sem-número de abalos profundos, e é portanto provável que, desde que não perca a si mesma de vista, sobreviva ao Brexit, ao racha entre os príncipes William e Harry e a qualquer outra crise que venha a surgir. E as crises vão vir, sugere Morgan, porque elas são em grande parte o tecido de que a Inglaterra se faz e refaz.

Quanto à própria The Crown, ela consegue passar incólume pelo que poderia ser um golpe irreparável para uma série: a decisão de continuar uma mesma história com uma substituição praticamente integral do elenco. Claire Foy foi estupenda como a jovem monarca das duas primeiras temporadas — mas Olivia Colman, recém-premiada com o Oscar pelo papel da rainha Anne em A Favorita, está soberba como a Elizabeth II da meia-idade, embora pouca semelhança física tenha com a figura real ou com a atriz que a antecedeu. Também Helena Bonham Carter em nada se parece com Vanessa Kirby, que interpretava a princesa Margaret, a insatisfeita irmã menor da rainha — mas acerta na dosagem de narcisismo e frustração. Philip saiu ganhando: Matt Smith era bom no papel do marido de Elizabeth, mas Tobias Menzies, de Outlander, é nada menos do que espetacular, e faz da rigidez exterior do consorte real o sinal de um tumulto interno alarmante. Impecável, também, é a escolha dos novos intérpretes que agora entram na história.

SERIADO THE CROWN S3 1188.jpg
BALADEIRA – Helena, como Margaret, e o marido (Ben Daniels): casamento ruim (Des Willie/Netflix)

O primeiro destaque é Jason Watkins, excelente como o primeiro-ministro Harold Wilson. Eleito pelo Partido Trabalhista e muito plebeu, o socialista Wilson causa arrepios em Elizabeth: “Nem jovem nem velho, nem alto nem baixo, nem frio nem quente”, diz ela em um jantar, espantada com a banalidade do novo chefe de Estado. Se Winston Churchill fora o grande mentor de Elizabeth, porém, em Wilson ela vai aos poucos encontrar algo imprevisto, e necessário: parte oponente e parte aliado, mais respeitoso do que ela espera mas muito franco, ele é inteiramente seu complemento, e compreende as particularidades de sua situação melhor do que qualquer outro primeiro-ministro até ali. É um relacionamento ditado pelas circunstâncias mas que, quase que sem os parceiros percebam, se torna verdadeiro.

Continua após a publicidade

Se a afinidade inesperada entre Elizabeth e Wilson é o apelo que a série faz em prol da busca por um território comum, as relações de Elizabeth em família permanecem conflagradas. As duas primeiras temporadas já haviam explorado a ideia de que ser esposa, mãe ou irmã ao mesmo tempo em que se é emblema místico da identidade nacional é uma missão impossível, e que o fracasso quase sempre vai se dar na esfera pessoal. Nesta nova temporada, entretanto, essas duas dimensões da rainha testam uma à outra de maneira drástica. Quando um deslizamento em uma mina de carvão no País de Gales mata 28 adultos e 116 crianças, Elizabeth demora não apenas a reagir, mas a sentir — e é palpável a repugnância que isso desperta em Philip, que tomou a iniciativa de ir sozinho ao terrível funeral coletivo. O abismo conjugal, enfim, parece cada vez maior — assim como a ambivalência com que Elizabeth trata Margaret, e a consternação com que ela olha seu herdeiro.

SERIADO THE CROWN S3 83.jpg
TRISTEZA - O’Connor e Emerald Fennell, como Charles e Camilla: amor frustrado (Colin Hutton/Netflix)

No papel do jovem Charles, Josh O’Connor capta com nuances comoventes a vulnerabilidade, o jeito meio sonhador e a disposição melancólica do príncipe, em uma atuação que por si só já propõe uma discussão perspicaz sobre a transformação nem sempre harmônica da família real britânica: justamente por causa desses atributos que sua mãe considera tão indesejáveis, Charles emplaca uma surpreendente vitória diplomática no País de Gales inflamado por aspirações nacionalistas. Mas ganha uma descompostura arrasadora — e, embora a cena em questão seja de uma dureza horrível, o espectador se vê obrigado a admitir que a rainha tem argumentos válidos.

Continua após a publicidade

Quando Charles se apaixona por Camilla, que então ainda era solteira, Elizabeth tenta brecar a conspiração doméstica para afastá-lo da namorada imprópria, mas até essa concessão tem um quê de menosprezo; Camilla cura algo da insegurança do príncipe, argumenta a rainha (que se deixou ser voto vencido, com as consequências fartamente conhecidas). E esse, enfim, é o aspecto mais fascinante do que Peter Morgan, seu time de diretores e seu elenco fazem em The Crown: sua recriação da intimidade dos Windsor é a homenagem que o vício da bisbilhotice presta à virtude nobre, e insuficientemente praticada, da reflexão — sobre como um país resolve suas diferenças, decide entre o supérfluo e o útil na sua tradição e também preserva alguma frieza. A de Elizabeth II nem sempre é agradável de ver ou fácil de compreender — mas é mais difícil ainda de praticar.

Publicado em VEJA de 20 de novembro de 2019, edição nº 2661

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Semana Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

Apenas 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (a partir de R$ 8,90 por revista)

a partir de 35,60/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.