“Game of Thrones”: passei dez dias em Westeros e não acho o rumo de casa
Rever as sete primeiras temporadas de uma tirada só foi quase que um mergulho sem volta: é em forma de maratona que a série realmente fica fascinante
Que mundo estranho. Nenhum cavalo nas ruas, ninguém vestindo armadura, nem sinal de dragões. Neve e gelo, nem pensar – e também nada de decapitações, gargantas cortadas e gente com lanças atravessadas no peito. Estou realmente desorientada: nos últimos dez dias, passei até sete horas por dia (um total líquido de 63 horas e 17 minutos) andando por Westeros e também por Essos, acompanhando novamente pessoas que eu achava já conhecer muito bem, mas sobre as quais descobri uma infinidade de coisas novas. Fiz essa maratona olímpica de Game of Thrones como parte do trabalho para escrever uma matéria que está nesta edição de VEJA. Achei que ia me cansar – porque, nesses oito anos em que GoT foi exibida, várias vezes me cansei de uma coisa ou outra. Mas que nada: gostei tanto que ainda estou mais lá do que cá, e não tenho nenhuma vontade de voltar.
Rever GoT de uma tirada só é uma maneira excelente de apreciar o controle dos criadores e produtores David Benioff e D.B. Weiss sobre essa matéria-prima tão extensa e tão difícil de domar que são os livros de George R.R. Martin. Consta que, uns nove ou dez anos atrás, quando os dois foram apresentar seu projeto a Martin, ele fez uma única pergunta à dupla – quem, na opinião deles, era a mãe de Jon Snow. Benioff e Weiss ganharam o sinal verde de Martin porque acertaram a resposta, e eu me pergunto como eles podem ser tão espertos: só sei a identidade dela porque a série mesmo me contou, na sétima temporada. Senão, estaria boiando até agora. Mas é uma amostra da inteligência e do critério com que eles leram a saga (ou o que foi publicado dela), e da clareza com que passaram por cima de tudo que é acessório nela para ir direto ao que interessa. Comparando uma coisa com a outra, não tenho dúvida: Benioff e Weiss melhoraram o que estava no papel. Não só porque filtraram os livros mas porque, quando se descolaram deles (a partir da quinta temporada, a série meio que andou sozinha), aí é que GoT ficou irresistível mesmo.
GoT não é perfeita, e é melhor por não ser perfeita: é o que a torna mais palpitante e a faz ter vida própria. É ambiciosa demais para ser perfeita, grande demais para não ter altos e baixos – e, por isso mesmo, é única. Não importa qual o seu grau de adesão, digamos assim, à série: em 19 de maio, quando o último episódio for ao ar, algo imenso e singular vai terminar e deixar um vazio que, até onde se pode ver, a televisão não faz ideia de como preencher.
A seguir, então, alguns dos muitos pontos altos de GoT que sobressaíram nessa revisão super-intensiva:
* Dragões! Dragões! Dragões!
* Gostar dos personagens de GoT é gostar também dos atores que os interpretam, e, para mim, a parceria mais plena de todas é a de Tyrion Lannister/Peter Dinklage. Tyrion é pândego, cínico, devasso e não sabe do que gosta mais, se de vinho ou de prostitutas. E por isso seu senso de justiça é tão admirável, e seu coração é tão limpo: é o único Lannister que teve a curiosidade de sair da redoma de poder, privilégio e arrogância em que sua família se fechou, e também o único a quem, por causa de sua aparência, essa redoma nunca protegeu totalmente. É mais fácil (especulo) ser herói quando a vida preparou o terreno para o desapego e a nobreza de espírito, e muito mais difícil quando essas qualidades têm de ser cultivadas de maneira tão penosa.
* Adoro Lorde Varys/Conleth Hill, com seu crânio liso e redondo de Buda, as mãos sempre cruzadas em cima daquela barriga confortável e a inteligência trabalhando sem parar para antever os lances do jogo dos tronos e, por meios às vezes discutíveis, chegar ao resultado mais justo – ou seja, garantir que a coroa de Westeros vá parar em alguma cabeça que não se ocupe só da ideia de poder. Além do quê, a amizade de Varys e Tyrion é daquelas que fazem toda uma vida valer a pena.
* Foi linda a paixão de Jon Snow/Kit Harington e Ygritt/Rose Leslie (tão linda que os dois atores se casaram em junho do ano passado). Mas, quando Jon e Daenerys Targaryen/Emilia Clarke se encontram pela primeira vez, aí não estamos falando mais de puppy love: isso aqui é daquele tipo de amor que vai ou racha. O quê, aliás, em vista das revelações sobre a verdadeira identidade de Jon, certamente vai ser um dos entrechos mais tensos da oitava temporada.
* Falando em lindeza, mais lindo ainda foi ver os muitos atores que começaram a carreira direto em papéis importantes em GoT, e cresceram junto com seus personagens diante dos olhos do público nos últimos oito anos: Emilia Clarke, Kit Harrington, Sansa Stark/Sophie Turner, Arya Stark/Maisie Williams, Samwell Tarley/John Bradley, Brandon Stark/Isaac Hempstead Wright, Podrick/Daniel Portman, e até o odiado Olly/Brenock O’Connor. E o que dizer daquela maravilha que foi a participação da diminuta Lady Lyanna Mormont/Bella Ramsey?
* Um dos aspectos mais sensacionais da série, para mim, são os relacionamentos de igual para igual que se formam entre personagens já de bastante idade e pessoas bem jovens. A admiração que Tywin Lannister/o grande Charles Dance vai aos poucos descobrindo pela sua pequena servente (Arya Stark, fingindo-se de plebeia anônima), que lhe põe a mesa e enche o copo dos convidados, é tão magistralmente bem escrita que renderia fácil fácil um filme só seu. A relação complicada entre Arya e Cão de Caça/Rory McCann é outra façanha dos roteiristas – e o amor paternal de Lorde Davos/o encantador Liam Cunningham pela inteligente, determinada e tão desprezada Shireen Baratheon/Kerry Ingram é de uma delicadeza e uma sinceridade que me partiram o coração todas as vezes que eles estavam em cena.
* A Batalha dos Bastardos é um feito cinematográfico de GoT. Mas, pesando todas as grandes sequências de ação da série – essa, a Batalha de Blackwater, o Lago de Gelo etc. etc. –, a minha preferida ainda é, de longe, o ataque dos Mortos a Durolar, no episódio 8 da temporada 5. É a primeira sequência longa de ação de toda a série, sem nenhum corte para outros personagens ou outra locação (o que, inclusive, marca uma virada estrutural daí por diante); é assustadora e triste, e como nenhuma outra em todas as sete temporadas dá uma ideia clara de como será terrível a guerra dos vivos com o Exército do Rei da Noite.
* Aliás, anda circulando por aí uma teoria sobre a identidade do Rei da Noite que é de estarrecer. Não vou ser eu a entregar; quem não se aguentar, que dê um Google.
* Todos os louros para David Benioff e D.B. Weiss por irem aonde nenhuma série foi: incesto com filhos nascidos dele, uma filha queimada viva pelo próprio pai por ambição, o choque do Casamento Vermelho, a morte tenebrosa de Oberyn, a crueldade sem limites de Ramsay Bolton (Iwan Rheon), a ressurreição perturbadora de Jon Snow e tantas outras coisas mais que, relembradas, continuam a arrepiar.
* E, no quesito “eu não deveria estar comemorando isso, mas estou”, não há nada que se compare à satisfação com a morte do sociopático, petulante, mimado e tapado Rei Joffrey/Jack Gleeson (que, vale notar, parece ser um amor de pessoa e é muito querido pelos colegas de elenco). Exceto, claro, a alegria de ver Cersei Lannister/Lena Headey ter de andar pelada por Porto Real, levando repolho e outras coisas mais na cara. Aí, confesso, entra em jogo uma birra pessoal minha. Cersei é a bisca que todos amam odiar, naturalmente, mas lá pelo meio da maratona eu já estava por aqui também da própria Lena Headey. Ela é muito elegante etc. e tal, mas é também uma atriz muito monótona, que interpreta com o queixo e só. Algo assim como o Chuck Norris de Westeros: se Cersei está feliz, furiosa, triste, ressentida, irônica ou seja lá o que for, o recurso dramático de Lena é sempre o mesmo – espichar o queixo para a frente.
* Finalmente, em mais uma prova de que GoT não é uma série perfeita e isso em nada a diminui, aquelas mulheres de Dorne são chatas de doer. A série teria passado muito bem sem elas. E, no entanto, continuou ótima apesar de perder tempo com elas.
E, agora, vem o preparo psicológico para essa realidade tão árdua quanto incontornável: o fato de que este domingo 14 é o começo do fim e, em 19 de maio, minha viagem por Westeros termina de vez. Ou, como diria o fascinante Jaqen/Tom Wlaschicha: valar morghulis.