E lá vamos nós: Robert Langdon, o simbologista interpretado por Tom Hanks com simpatia de bom vizinho e suavidade de espião, tem uma nova e confusa conspiração a desvendar. Ela envolve uma ameaça biológica, porque vírus e bactérias incontroláveis são a paranoia du jour. Envolve, também, códigos cifrados cheios de referências religiosas e medievais (especificamente ao Inferno, a primeira seção da Divina Comédia do poeta florentino Dante Alighieri, morto em 1321), porque se não fosse assim Langdon não teria o que fazer no meio dessa história toda. Envolve belíssimas locações históricas em Florença, Veneza e Istambul, porque o turismo guiado é um dos atrativos dos enredos de Dan Brown. E tem um monte de bons atores interpretando bons atores que teoricamente estão interpretando personagens, porque a produção tem de ser de primeira categoria mas o roteirista não é obrigado a fazer milagre com o original que tem em mãos.
Tem também, claro, a direção classuda de Ron Howard, porque Howard é um desses sujeitos capazes de manter a compostura em situações de improbabilidade alarmante. Por exemplo? Sem spoiler: Langdon começa o filme no hospital, atordoado, sem saber como foi parar em Florença. Tem de fugir, de camisola aberta atrás mesmo, e já começar a desvendar o enigma. Ainda bem que a médica que está cuidando dele, a dra. Sienna (a inglesa Felicity Jones, que todo mundo está esperando para ver em Rogue One), é ótima para tratar traumatismos cranianos e também para discutir Dante; ela manda que é uma beleza em arte e literatura da Baixa Idade Média.
Se há um código que vale decifrar em Inferno, é o código dos números: por que um estúdio investe tanto tempo, energia, dinheiro e talento numa série que, a cada episódio, traz retornos mais reduzidos? Onde os produtores esperam chegar com isso?
Façamos os cálculos.
Em 2006, O Código da Vinci custou 125 milhões de dólares e rendeu 758 milhões na bilheteria mundial. Na conta banal, aquela que não leva em conta os (enormes) gastos com promoção e distribuição, mas também não computa os (imensos) ganhos com home entertainment e exibição na TV, O Código Da Vinci rendeu seis vezes mais do que custou. É um resultado excelente para filme de grande orçamento.
O episódio seguinte, porém, terminou a carreira com um balanço bem menos favorável: em 2009, Anjos e Demônios custou 150 milhões e rendeu 486 milhões. Ou seja, rendeu pouco mais de três vezes o que custou – isso naquela mesma conta banal feita acima. Não é o acaso, portanto, que colocou sete anos de intervalo entre os dois filmes: é a cautela mesmo. Vários fatores contribuíram para a queda no desempenho do segundo filme. O primeiro e mais importante é que Anjos e Demônios não teve o impulso da “polêmica” de O Código Da Vinci, com sua teoria sobre uma união carnal entre Jesus e Maria Madalena, a qual teria produzido descendentes até a geração atual. Falou em religião, o negócio pega fogo. Em comparação, Anjos e Demônios tratava de conspirações no Vaticano. Fé é uma coisa, Igreja outra coisa bem diferente. Em termos de polarização, é como acender uma fogueira ou um fósforo. Também já não havia mais o fator-surpresa com que todo filme inaugural conta. E é preciso computar ainda o fato de que Tom Hanks, em 2009, andava numa fase low profile da carreira, com dois filmes pequenos, apenas, nos dois anos anteriores.
Como prevenir é melhor que perder, Inferno foi feito em política de contenção fiscal: as publicações especializadas estimam seu orçamento em 75 milhões de dólares, metade do que foi desembolsado em Anjos e Demônios – ou menos do que a metade, se fôssemos considerar a inflação acumulada nesse intervalo. (Aliás, não vi diferença nenhuma na produção; a economia de 75 milhões foi bem criteriosa.) Os serviços de projeção de bilheteria estão chutando em 88 milhões de dólares a renda americana final de Inferno. Atenção: americana, apenas. Nos dois episódios anteriores, 30% da renda veio do mercado americano e 70%, do mercado estrangeiro. Isso significa que, se o chute de 88 milhões estiver correto, e se a gente aplicar a Inferno a mesma regrinha que se verificou em O Código Da Vinci e em Anjos e Demônios, sua bilheteria mundial total deve bater nos 293 milhões. Ou quatro vezes o seu custo – uma taxa ainda bem menos interessante que a de O Código da Vinci, mas melhor que a de Anjos e Demônios.
Os produtores, claro, têm esperança de um resultado um tiquinho mais favorável que esse: Inferno foi o best-seller de 2013 nos Estados Unidos e vendeu 6 milhões de cópias no mundo. (Impressionou-se? Pois se desimpressione: O Código Da Vinci vendeu mais de 80 milhões de cópias.) Além disso, por um golpe de sorte daqueles, Tom Hanks está num momento excelente: Sully – O Herói do Rio Hudson, em que ele interpreta o piloto que fez aquele pouso forçado magnífico na água em Nova York e salvou todo mundo a bordo, é a grande bilheteria das últimas semanas nos Estados Unidos, e continua com muito fôlego. Ou será que, ao contrário, a plateia vai considerar que já teve sua melhor dose de Tom Hanks nesta temporada e não precisa de outra?
A conta que está sendo feita, na verdade, é a seguinte: se O Código Da Vinci é o topo a que os thrillers com Robert Langdon podem aspirar – o paraíso deles –, então vale a pena passar uma temporada no purgatório à espera de uma nova libertação das almas. Dan Brown deve lançar um novo livro com Robert Langdon em 2017, e quem sabe nesse as trombetas não vão soar de novo? Se for assim, vai estar tudo pronto para a ascensão, porque alguém se lembrou de acender duas velinhas na igreja e manter viva a memória do simbologista simpaticão. É isso que são Anjos e Demônios e Inferno, enfim: oferendas. Não saem barato, mas deixar de gastar nelas pode custar mais caro depois – em vez de, quem sabe, subir ao paraíso, pode-se despencar do purgatório direto para o inferno.
Trailer
INFERNO Estados Unidos/Japão/Turquia/Hungria, 2016) Direção: Ron Howard Com Tom Hanks, Felicity Jones, Ben Foster, Omar Sy, Sidse Babett Knudsen, Irrfan Khan, Ana Ularu Distribuição: Sony Pictures |